Alê | @alexandrejjr 28/02/2021
O mal maiúsculo
A literatura é um refúgio. E gosto de acreditar que posso me perder nela, principalmente quando a obra é de um escritor que está entre os meus favoritos. Lançado em 1989, no auge da produção ubaldiana, “O sorriso do lagarto” aparece logo após “Viva o povo brasileiro”, clássico absoluto da nossa literatura - se não for o livro mais importante que temos.
Ubaldo escreve como ninguém. Dotado de um estilo elegante que dá vida à expressão “erudito popular”, o escritor mostra neste livro que contar histórias é mesmo uma arte. Partindo de seu microcosmo preferido, a ilha de Itaparica, na Bahia, conhecemos aos poucos cada uma das personagens. É indescritível a habilidade com a qual Ubaldo consegue fazer diálogos, pois são tão reais que esquecemos que as frases foram tiradas da cabeça de alguém. E os tipos são tão brasileiros que é impossível não se identificar logo nas primeiras páginas.
Um peixeiro biólogo (ou um biólogo peixeiro?), um político corrupto com um passado escondido, uma socialite com aspirações de escritora erótica, um pai de santo, um padre e um médico com atividades pouco transparentes compõem o grupo principal da narrativa. Retratos de uma burguesia burra, racista e imoral, regada a muito sexo (ou seria sacanagem?), drogas e violência. E nisso tudo um Brasil que enxerga a si mesmo no espelho, do Mal que nos rodeia, esse com o “m” maiúsculo. Isso é João Ubaldo Ribeiro. Isso é “O sorriso do lagarto”.
Como se não bastasse, ainda nos deparamos com discussões sobre fé, paixão, e bioética, com ênfase nos experimentos genéticos. É interessante imaginar que Dolly, a ovelhinha que foi o primeiro mamífero clonado do mundo, só viria a acontecer em 1996, portanto, Ubaldo traz suas preocupações acerca do tema sete anos antes do homem brincar de Deus.
“O sorriso do lagarto” é tão estupendo que virou “minissérie” da Rede Globo dois anos depois do seu lançamento, em 1991. E mesmo tendo em seu elenco atores como Raul Cortez, Tony Ramos e Maitê Proença vivendo os papéis principais, não é preciso dizer que o livro é muito superior. Quem quiser tirar a prova, pode ir conferir no YouTube os 52 - sim, você não leu errado - episódios da tentativa de adaptação. Mas isso é outra história.
Neste quarto livro lido de Ubaldo percebi que, além da incomparável ironia presente em suas histórias, gosto demais dos flertes que ele faz com o fantástico e a lucidez com a qual trata das crenças, lembrando, de certa forma, o português José Saramago. João Ubaldo fazia muito mais do que literatura, por isso não se trata de uma simples leitura. Mas isso vocês só vão descobrir lendo, certo?