Queria Estar Lendo 04/10/2017
Resenha: O ódio que você semeia
Alguns livros vão além de seu tempo. Eles existem e vão ser importantes para sempre. Essas obras atemporais falam sobre temas importantes, têm críticas que precisam ser discutidas, dão voz a situações que precisamos ver em destaque mais vezes. O ódio que você semeia, best-seller da Angie Thomas, é esse tipo de história; atemporal, importante e que sempre será necessária.
O livro acompanha a adolescente Starr. Ela e Khalil, seu melhor amigo, saem de uma festa e são parados por uma viatura da polícia durante a noite. Starr aprendeu desde cedo como uma pessoa negra deve se comportar frente a um policial: sem movimentos bruscos, mãos onde ele possa ver. A triste realidade do que o ódio e o julgamento podem fazer por causa da cor da sua pele. Um movimento errado, uma suposição e Khalil é assassinado, deixando para trás o trauma na garota e o peso da injustiça. Starr é a única testemunha do crime, e precisa aprender a própria voz para clamar justiça antes que as investigações levem a culpa para cima do garoto.
"Khalil foi silenciado, mas vamos nos juntar e fazer com que nossas vozes sejam ouvidas em seu nome."
O impacto que essa leitura trouxe é difícil de explicar. Não é um livro fácil, não é uma história simples. É a realidade nua e crua, é a ficção falando sobre o mundo em que vivemos, expondo os muitos lados dele - e um desses lados é corroído pelo ódio, pela discriminação, pelo preconceito. Starr vive a mesma realidade que muitos outros jovens. Khalil foi assassinado pela mesma realidade que a de muitos outras vítimas. A narrativa simpática e bem humorada de Angie bate de frente com os acontecimentos pesados que a trama explora, e aí está o ponto-chave do livro, o que o torna tão profundo: é verdadeiro. É verídico. Existe como tudo que aconteceu nele, como todos que viveram nele.
Starr é uma das melhores protagonistas que já li. Ela tem muita presença em cena, cheia de atitude e bom humor, dedicada à família e presente pelos amigos. É uma garota doce, gentil, enfezada e brusca. Ela vive grandes dilemas dentro da narrativa e tem alguns arcos de crescimento absurdamente bem trabalhados; Starr experimenta duas realidades todos os dias: a do seu bairro, pobre e marginalizado, mas cheio de pessoas com quem ela se importa, carregado de memórias que fizeram dela quem é, e a da sua escola, particular e elitista, onde Starr é 1 entre poucos alunos negros. Mas tudo está muito bem no dia a dia dela, conciliando a realidade da família com a da escola - onde ela é um pouco menos expressiva, com medo que as amigas e os conhecidos julguem seu comportamento como o "da garota negra que veio do gueto", certa de que se controlar e esconder alguns detalhes sobre sua casa e sua vivência não é ruim.
"Às vezes, você pode fazer tudo certo, e mesmo assim as coisas dão errado. O importante é nunca parar de fazer o certo."
Aí Khalil é assassinado e toda a tormenta começa. Starr vive o medo, a tormenta, o luto e a raiva tudo em intervalos bem intercalados. Ela não pode descarregar suas emoções com as amigas da escola porque Maya e Hailey não sabem sobre o assassinato - e, quando elas descobrem, é através dos olhos do policial branco, aparentemente "injustamente" acusado. E, do lado da família, do bairro e da sua própria consciência, Starr vê sua raiva dando lugar à sede por justiça. Essa justiça pede que Starr fale, que erga sua voz, que mostre o crime e o responsável por ele, que mostre ao mundo que Khalil era só um garoto e que nada, absolutamente nada justificaria sua morte. Mas, claro, a vida não é fácil e encontrar justiça menos ainda.
Eu amei a interação da Starr com a sua família, e como eles foram o alicerce para ela encontrar sua coragem e aceitar seus medos como parte dela. Seu pai, Maverick, principalmente, foi um personagem chave para o crescimento da garota. O relacionamento deles foi tão natural e emocionante, cheio de altos e baixos, mas construído em cima de um amor incondicional que nada poderia quebrar. Sua mãe, Lisa, é o coração da família, mas também uma parte bem racional dela. Ela e o marido têm um relacionamento lindo, um elo que equilibra todos os perrengues pelos quais a Starr e os outros dois filhos passam - os irmãos da Starr, inclusive, são maravilhosos. Seven é o mais velho, o primeiro filho do Maverick e praticamente adotado pela Lisa como seu, já que a mãe está em um relacionamento perigoso e deu as costas aos filhos - e Sekani ainda é a alma inocente em toda a situação. Ele é muito ativo e cheio de comentários afiados, mas em relação à realidade que a família vive, ao pesadelo que a Starr enfrentou e vem enfrentando, ainda é ingênuo. E não dá pra deixar de citar o tio Carlos que, apesar de não dividir mais a realidade do bairro com eles, divide seu coração com todo mundo, especialmente a Starr. Ele ajudou a Lisa a criá-la e está ali pela garota nos momentos em que ela mais precisa.
"- Ter coragem não quer dizer que você não esteja com medo, Starr. Quer dizer que você segue em frente apesar de estar com medo."
Tudo que a Starr era e se tornou dentro do livro aconteceu por causa do apoio da família. Acho que foi o primeiro livro que li em que isso foi 100% trabalhado, que a família era mais do que personagens coadjuvantes ao lado da protagonista, mas parte do protagonismo dela. Chorei e ri abertamente com eles em vários momentos da trama, e com certeza me apaixonei pelo amor que saltou das páginas entre eles.
Quanto aos outros personagens que aparecem, há muitos nomes a serem citados, uma vez que todos ganham importância na trama. Chris, namorado da Starr, vive algumas realizações importantes com ela - a relação entre os dois tem alguns receios, uma vez que Starr vive hesitações a respeito da cor de suas peles, do julgamento alheio, do que seu pai e as outras pessoas pensarão ao ver um garoto branco com uma garota negra. Foram dúvidas e questionamentos legais e bem trabalhados dentro do psicológico e emocional da personagem, e eu amei os dois. Chris é um bobão apaixonado muito gentil e atencioso.
"Qual é o sentido de ter voz se você vai ficar em silêncio nos momentos que não deveria?"
As amigas de escola da Starr também ganharam destaque nos momentos certos - especialmente a Maya. Hailey, por outro lado, foi o suprassumo de tudo que há de desprezível em uma pessoa. Junte "all lives matter" + "nem todo homem" + "racismo reverso" em uma personagem e você tem a Hailey. Sim, deu vontade de esfregar a cara dela no asfalto algumas vezes, mas a Starr tirou todas as situações de letra. Minha neném!
Toda a questão em cima do julgamento do policial e do clamor por justiça desenvolve uma tensão interessante no livro. O que esse crime ergueu sobre a sociedade, sobre os olhos de quem não assistiu, mas ouviu sobre a história, tudo gera desconforto para o leitor, mas é um desconforto bem-vindo porque traz empatia. Nos faz pensar, questionar e, principalmente, entender. É um livro importante porque não é fácil, não é gentil. É engraçado, é simples e é questionador. É um soco no estômago porque aconteceu. Porque é real. Impõe situações horríveis do dia a dia, discute o alcance do preconceito, critica a visão de uma maioria sobre as minorias, e está muito certo em fazer tudo isso.
"Engraçado. Os senhores de escravos também achavam que estavam fazendo a diferença na vida dos negros. Que os estavam salvando do "jeito selvagem africano". Mesma merda, século diferente. Eu queria que pessoas como eles parassem de pensar que gente como eu precisa ser salva."
Queria ficar falando sobre como essa história me impactou, sobre como a jornada da Starr e dos outros personagens, do bairro em que ela vive, da voz que ela carrega, como tudo isso foi importante e magistral, mas esse é um livro difícil de descrever. É uma trama complexa que precisa ser lida. Precisa.
O ódio que você semeia vai ser adaptado para os cinemas - as gravações já estão em andamento, inclusive, e o elenco é estelar. Tem nomes como Amandla Stenberg, Regina Hall, Russell Hornsby, Common, Anthony Mackie e Issae Rae.
"As palavras dela tinham poder. Se ela dissesse que estava tudo bem, estava tudo bem. Mas, depois de segurar duas pessoas dando seus últimos suspiros, palavras assim não querem mais dizer merda nenhuma."
Vou terminar essa resenha com uma frase do livro, porque ela destrincha tudo o que esse título e essa obra trazem para o público: The Hate U Give Little Infants Fucks Everybody, ou "o ódio que você passa pras criancinhas fode com todo mundo."
site: http://www.queriaestarlendo.com.br/2017/10/resenha-o-odio-que-voce-semeia.html