Tamirez | @resenhandosonhos 07/08/2018Prícipe Cativo: O EscravoEsse livro pode parecer uma história bem comum de fantasia, mas não é. A edição nacional com uma capa bem genérica e a sinopse também não serviram para explorar os principais pontos dessa história e avisar o leitor do que ele vai encontrar. Eu presenciei e participei de vários debates e pontos de vista sobre a necessidade ou não disso e sou defensora de que sim, a gente precisa conversar, porque além de sair da zona de conforto de muitos leitores tradicionais do gênero, também é um livro com gatilhos.
Primeiro de tudo estamos lidando com uma sociedade escravista. Akielos é famoso por seus preciosos e bem treinados escravos. Há uma “escola” dedicada a isso e hierarquias dentro dessa sociedade, sendo o mais precioso e bem sucedido aquele que é escolhido para servir os lordes como escravos de cama. Apesar de cercados de riquezas, a imagem que a autora quer passar com o livro não é de romantização e há algumas cenas fortes pra firmar isso na mente do leitor. Se você é escravo de alguém, esse alguém pode fazer o que quiser com você, inclusive cedê-lo para que seja “usado” por outra pessoa. E isso é uma qualificação para estupro.
“Aprender a língua de um inimigo era tão importante quanto aprender a língua de um amigo.”
Agregado a isso temos uma sociedade estruturalmente homossexual (ou bi em alguns aspectos). Homens se relacionam com homens e as vezes com mulheres, e vice-versa. A forma como isso acontece em cada um dos reinos é diferente. Em Akielos tudo é mais centrado e contido, enquanto em Vere há mais abertura e relações públicas. Enquanto no primeiro bastardos são aceitos de bom grado, no segundo é algo inaceitável. Akielos baseia sua estrutura na Grécia antiga, tanto na aceitação quanto na forma de se vestir, enquanto Vere se espelha na corte francesa, com trajes laçados e pouco pudor.
Dai você vai me perguntar: temos escravos – sexuais – e um mundo homossexual, então este é um livro erótico? NÃO. Em toda a trilogia temos bem poucas cenas com apelo sexual, e elas cabem contadas em uma mão. O que temos aqui é uma construção de mundo baseada em pilares diferentes, que apresenta essa “inversão” das relações como algo natural e intrínseco nesse mundo. Não há debate sobre o assunto, porque não há estranheza.
Em contra partida, a escravidão não é algo que passa despercebido ou sem reflexão. Ela, assim como algumas cenas que envolvem abuso sexual e violência – e que podem gerar o gatilho que mencionei – estão inseridas na primeira metade desse livro pra que o leitor compreenda a essência dessa sociedade e como as pessoas lidam com as coisas em cada um dos locais. Tendo feito isso, a autora mantém a temática viva na mente do leitor sem precisar ficar chocando a cada conjunto de páginas. Logo, o incomodo que essas cenas podem causar está ali significando algo e deve ficar marcada no leitor assim como fica marcada nos personagens que as presenciam ou participam delas, durante toda a trilogia.
“Você fala como um mestre. Mas é um escravo, como eu.”
Tendo trazido esses três aspectos que não constam num primeiro olhar ao livro, e que eu acho serem extremamente relevantes, é hora de debater sobre o que realmente temos enquanto história. A trama desenvolvida nesse primeiro livro envolvendo Damen e Laurent é bem básica. Damen é o típico personagem herói que foi injustiçado e que precisa lutar pelo seu trono de volta. Ele tem princípios, acredita no certo e no errado e foi criado para ver Vere como bárbaro e horrível. Enquanto Laurent é escorregadio, metódico, gelado e com um toque malévolo que a princípio o posiciona como vilão. Ele vai aprontar suas atrocidades e o leitor vai odiá-lo.
Porém, esse é um personagem que tem muito a nos ensinar, assim como Damen. É muito interessante acompanhar o desenvolvimento dele, afinal agora que pode ver as coisas com seus próprios olhos, nem tudo vai soar tão ruim como era antes se referindo a Vere, e Akielos pode não parecer mais tão intocável como era quando vista de dentro. Há um amadurecimento de ambos os personagens ao longo do livro, mas Damen é aquele que nos conduz pela história, logo é nele que temos os olhos e nele também que acompanhamos melhor a evolução. Laurent será um personagem cinzento por um longo tempo, o que não tira dele o brilho próprio.
Príncipe Cativo é um livro de apresentação de universo e dos personagens. Ele é o mais curto entre os três e acho que a autora o usou realmente pra tentar inserir o leitor da melhor forma possível nesse contexto diferente. Esse também é o mais fraco dos volumes e eu espero que a editora não demore a lançar os outros, porque certamente ficará um gostinho de quero mais e o segundo levanta muito o nível da história.
Como já mencionei, a capa passou longe de me agradar e também não apoio o uso do subtítulo, pois novamente direciona a história pra algo que não realmente é o real. Minhas capas preferidas são as australianas, mais minimalistas. As orientais também são boas porque trazem ilustrações únicas que se encaixam melhor na proposta do livro. Não é necessário estar gritante na capa sobre o que é o livro, o que não pode acontecer é apresentar algo que não é o verdadeiro. Quando essa capa saiu eu parei por um tempo para pensar se havia algum conflito armado que envolvesse pessoas de armadura, e não. Logo, essa escolha faz ainda menos sentido.
Desde que eu li o livro em inglês e advoguei pela publicação no Brasil, duas coisas me deixavam temerosa. A primeira era que o livro não fosse vendido da forma correta, induzindo um leitor desinformado a consumir um livro que ele não se sentiria confortável. Não é mistério pra ninguém, acredito, que o público mais tradicional do gênero de fantasia medieval é masculino e heterossexual. Assim, essas pessoas se forem munidas de preconceito – o que é algo muito comum, infelizmente -, tem a faca e o queijo na mão para adquirir esse livro sem saber o que realmente vai encontrar e esquincalhar a história por não ser a tradicional jornada do herói machão que derrota mortais e dragões. A segunda coisa diz respeito a tradução. Essa é uma história que possui termos que funcionam muito bem no inglês, mas que podem soar vulgares no português se tratados de forma incorreta. Dessa forma, espero que Príncipe Cativo tenha realmente ganhado atenção em sua terminologia e revisão, pois o limite entre uma coisa soando como outra é bem complicado em casos assim.
Enquanto eu escrevo essa resenha eu ainda não tive contato físico com a edição nacional e portanto não posso afirmar como ela está, apesar do livro já estar disponível. Agora, estou ansiosa para começar a receber os feedbacks e ver o que os leitores de interesse estão achando dessa história que em sua totalidade virou uma das minhas queridinhas. Eu já li a trilogia completa, então em breve sairá a resenha do segundo, Prince’s Gambit.
Príncipe Cativo se destaca por seu diferencial ao construir uma sociedade baseada em outros princípios e não tratar o tema com estranheza, afinal é ai que reside a magia da fantasia. Se há algo que me deixa irritada é ver autores justificando certos comportamentos “porque naquela época…”. Se o livro é uma fantasia, o mundo desenvolvido pode brincar com qualquer realidade e a escassez de novas propostas visando manter antigos preceitos e preconceitos é assustadora se olharmos por esse lado. Por causa disso, saldo Pacat pela “ousadia” de ousar e apresentar algo único e que certamente vai dar representatividade a leitores que não se encaixam no “padrão” do gênero.
Se você se sente confortável com os aspectos ressaltados, dê uma chance a essa história e tenha a minha palavra – se ela lhe valer – de que a trama melhora a cada livro, proporcionando uma boa experiência do início ao fim. Preconceitos deixados de lado, de coração aberto, Captive Prince é um ponto fora da curva.
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