Galáxia de Ideias 29/08/2017
Quatro humanos e uma história em comum.
Amara, João, Márcia e Tarso. Todos eles transgêneros, cada um com suas vivências e dores de terem vivido em um corpo com o qual nunca se identificaram, atuando na peça de teatro da vida real, onde as pressões familiares e sociais os impediram de por um longo tempo assumirem aquilo que veio na alma.
Se alguém não acredita em alma, vai passar a acreditar depois de acompanhar esses quatro relatos.
Relatos que doem, machucam, nos fazem pensar em como queremos um mundo melhor se nós não mudarmos antes disso.
Dê a mão ao quarteto de autores e siga a seta para uma vida mais bonita e plena de amor.
Olhe essa foto...
Me responda: O que você vê?
Se responder: uma pessoa como qualquer outra, então você está andando meio caminho para ser um ser humano muito melhor.
Por que? Essas quatro pessoas na foto são transgêneras. Dois homens e duas mulheres. Todos eles com o ponto em comum de terem descoberto que o corpo não combinava com sua imagem mental e até assumir de vez o que realmente eram, precisaram percorrer um caminho longo, complicado e acima disso, doloroso e cheio de dúvidas.
“O medo de sofrer violência, primeira coisa que me ensinaram, primeira coisa que ensinam uma criança a temer, era muito maior do que a vontade de descobrir quem eu era. Escolha? Não sei bem se podia pensar em escolha, bloqueio, talvez, travas, adestramento sistemático para você sequer perceber a máscara que botaram em seu rosto quando nasceu, e, caso um dia perceba, não ousar jamais perguntar-se o que há por trás dela.” – Amara Moira, Destino Amargo, página 18.
É disso que trata Vidas Trans - A coragem de existir, a mais recente publicação da Astral Cultural, cuja edição física é muito bonita e bem feita, dona de uma revisão impecável. A fonte, apesar de pequena, não dificulta a leitura e as páginas amareladas são um bálsamo para usuários de óculos. A capa é extremamente significativa e dá uma ideia do que esperar da leitura juntamente com as abas, que exibem pequenas biografias de seus quatro autores.
Uma ideia cuja execução não achei que me seria tão dolorosa enquanto lia. É um livro doído, por vezes amargo, às vezes alegre, muitas vezes triste, mas acima de tudo, uma constatação de que nós ainda temos muito a andar se quisermos ser mesmo uma raça evoluída.
Porque as histórias contidas em Vidas Trans contém cada absurdo que por vezes eu me peguei pensando: meu, mas que mundo é esse onde eu tenho que dividir meu oxigênio com gente dessa laia? O que estou fazendo para mudá-lo para melhor para meus filhos, talvez meus netos?
Como a Márcia Rocha diz na parte dela...
“– Eu não posso mudar o mundo, Eli – e, olhando através das vidraças para o rio, eu continuei: – Ele é um monte de merda!
Então, olhando diretamente para ele, concluí:
– Só o que eu posso fazer é limpar um pouquinho em volta de mim. Mas, certamente, se todas as pessoas limpassem um pouquinho à sua volta, o mundo seria um lugar muito melhor.” – Márcia Rocha, A luta pela aceitação, página 132.
O pior é que essa fala da Márcia é verdadeira demais. Especialmente na última semana, onde em Charlotteville, Virginia, EUA, uma centena de gente sem coração, sem amor próprio ou qualquer coisa que se possa chamar de minimamente humana, fez um protesto em favor da “supremacia branca”. Resultado: muitos feridos, uma pessoa morta e a constatação de que a DOUTORA Márcia (porque para mim ela é uma legítima doutora sim! Da empatia, da vida, da coragem, da HUMANIDADE) foi muito precisa quando disse isso.
Quando vi isso, o que me veio à cabeça foi: cadê Deus no coração dessa gente? Cadê o amor? Onde foi que elas deixaram a humanidade? Que tipo de gente ainda pensa que o mundo pertence a apenas um grupo?
É esse tipo de pessoas que espanca, humilha, violenta e até mata trans e travestis e torna o Brasil o país do Globo com o maior número de homicídios dessa parcela. Um tipo que não respeita diferenças e se acha tão acima dos outros a ponto de nem se dar ao trabalho de pensar se aquela vítima tinha amigos ou família.
“Os danos psicológicos que essa vida no escuro me legou são gigantes, irreversíveis em alguma medida, essa dificuldade de me entregar a uma relação, de me desarmar, de mostrar (mesmo para as pessoas em quem confio, pessoas que amo) o que há por trás da máscara, mas não posso ignorar que a descoberta tardia da minha transgeneridade me possibilitou também um monte de blindagens e a possibilidade de negociar em melhores termos a minha aceitação. Não sei se teria conseguido chegar ao doutorado caso transicionasse na adolescência ou no começo da vida adulta.” – Amara Moira, página 33.
Que é outra questão constantemente abordada pelos quatro autores, que relatam com uma sinceridade muitas vezes dolorosa a dificuldade por parte dos amigos e familiares de aceitar que aquela pessoa antes conhecida de um modo agora passa a ser outra. O que não é bem verdade, pois caráter e personalidade não depende de gênero e muitas vezes aquilo que a pessoa realmente é na verdade é muito melhor que a “versão anterior”. Naturalmente, na verdade nem tanto, amigos e família tem um péssimo hábito de achar que a nossa felicidade não depende 100% da gente e isso nunca será verdade. Por que?
Porque quando a questão é família, amigos e até mesmo a sociedade, eles esperam que nos encaixemos em um padrão estabelecido que na maior parte do tempo é completamente estúpido e sem sentido. No livro, Amara, antes de se tornar Amara Moira, teve namoradas. Márcia, a primeira advogada trans a ter o nome social registrado no quadro da OAB (sim, o nome social da pessoa trans É o nome dela, o de registro não conta), chegou a se casar e até mesmo tem uma filha, Giulia, hoje com 24 anos. João por anos teve de viver uma vida dupla e até mesmo se arriscou a ser preso pela Ditadura. T., por sua vez, foi uma “menina lésbica”, inclusive tendo tido sete namoradas, até finalmente se perceber como um homem trans.
“Sou um libertário, sem filiação partidária, e considero o machismo a grande patologia social. Minha luta é pelos direitos humanos abrangendo todas as minorias discriminadas, sejam elas de gênero, classe, raça, etnia ou de idade. Não se restringe à causa LGBT.” – João W. Nery, A viagem solidária, página 61.
Um exemplo do que eu disse antes: mulheres tem que ter filhos ou senão nunca serão completas. Gente, só observem o absurdo dessa frase. Ok, eu conheço muitas que são felizes sendo mães e até mesmo já me disseram que se tornar mãe foi a melhor escolha, mas nem todas desejam tal coisa. Porque quando você tem um determinado conjunto de crenças pessoais, qualidades, defeitos, caráter e personalidade, elas te fazem capaz de fazer determinadas escolhas. No caso de uma pessoa trans, porém, ela nasceu assim, mas, teve de se hormonizar, e até mesmo apelar para certas plásticas, uma delas, no caso de disforia de gênero, a redesignação sexual, para adequar a imagem física com a mental que sempre esteve na sua cabeça.
O problema, que na minha opinião é de uma hipocrisia descarada, é que tem um bando que pergunta: por que você não se aceita como Deus te criou?
Vamos pensar no seguinte: você tem um espelho em casa, sim? Olhe-se nele e responda: você gosta de tudo o que vê? Se sim, tudo bem, afinal, você tem o direito de achar sua imagem ótima. Suponha, porém, que você não gosta do seu nariz. Bem, tem duas alternativas: ou você aprende a conviver com esse nariz “feio” ou junta dinheiro para fazer uma rinoplastia. Mas geralmente todo mundo que pode prefere a segunda opção, de longe. No caso desses quatro autores trans e de todos os outros transgêneros existentes no mundo, o caso é que a imagem que eles veem no espelho é TODA errada e eles sentem essa necessidade, urgente e muitas vezes quase desesperada, de inverter isso.
“Com ajuda de uma transmulher e seu marido, que estavam hospedados em minha casa, bolamos uma história que seria contada no cartório. Eu, com 27 anos, tive que dizer que tinha 18 para justificar os motivos alegados, que era para servir o exército e que meu pai nunca tinha me registrado pois morávamos na roça. Me vesti matuto e fui me cagando de medo a um cartório do subúrbio. Paguei uma multa e 15 dias já tinha um nome masculino. Como consequência virei um analfabeto, perdendo meu diploma e meu histórico escolar. Agora eram dois crimes cometidos: o da cirurgia ilegal e portador de dois CPFs, um de mulher e outro de homem. Fui então obrigado a trabalhar como taxista, pedreiro, pintor de parede e de quadros, professor de computação para idosos, cortador de confecção e muitas outras funções a que tinha acesso graças a pessoas amigas ou por conta própria, sem papéis.” – João W. Nery, página 74.
“Mas e se você fosse cego?”, argumento que alguém vai usar, eu sei. Gente, ser cego não te impede de sentir que há algo errado com a sua imagem caso você seja trans até porque nós temos outros quatro sentidos além da visão. Inclusive aqui no blog temos duas resenhistas com deficiência visual, a Isabela e a Tamara, que escrevem maravilhosamente. Portanto, vamos parar de arrumar argumento tirado do mundo da imaginação (ou de outro lugar que não vou citar porque isso é uma resenha) para justificar o preconceito transfóbico.
Muitos conseguem, mesmo com dificuldade, transicionar para conseguir seu objetivo. Outros, passam toda uma vida convivendo com uma imagem que não é sua e vivendo uma vida dentro do que a sociedade considera aceitável. Bem, eu vou entender se alguém disser: mas a gente não consegue viver sozinho ou isolado. Entretanto, aqui cabe uma contestação: a própria sociedade não isolou, por anos, com motivos estapafúrdios justificados por conservadorismo e “isso é errado, pecado” e não sei mais quantos argumentos porcos, os quatro autores desse livro e pelo menos meio mundo de trans?
Certo, o caso da Márcia Rocha pode não ter sido difícil a nível épico, mas fácil não foi mesmo, até porque condições financeiras ela sempre teve, mas isso não compensa quando você passa 39 ANOS vivendo em um corpo com o qual você não se identifica e tendo de fingir para todo mundo que está tudo bem quando por dentro você sente que vai explodir se não tomar uma atitude.
“O mundo à minha volta enlouquecia, escandalizado. Eu estava completamente feliz com minha nova identidade, finalmente tendo a certeza de que não precisava mais nenhum personagem para as pessoas ao meu redor e muito menos para mim mesma. Mas todas as pessoas da minha vida, todos os que me viam como “o cara”, o homem perfeito, empresário bem-sucedido e desejado pelas modelos capa de revista, achavam que eu havia enlouquecido. Tive de provar algumas vezes que eu sempre fora aquela pessoa que agora todos viam e que somente algumas poucas pessoas sabiam. Uma delas era minha filha; outra, um amigo de infância que sempre soube; algumas namoradas do passado, minhas ex-esposas.” – Márcia Rocha, página 116.
Mas por que é tão difícil tomar uma atitude nesse caso? Em Vidas Trans, mais precisamente em Destino Amargo, a primeira parte do livro narrada pela Amara Moira, cujo nome significa “destino amargo” em grego, temos uma história repleta de absurdos vividos por ela quando ainda tinha corpo e rosto de “ele”. Quando ela conta sobre o meio machista e homofóbico onde foi criada e as consequências que isso deixou na mente dela, é de se compreender porque ela demorou tanto para se tornar quem realmente é. Ainda hoje, ela tem dificuldade para permitir que mostrem afeto por ela publicamente porque ela pensa que a pessoa pode ficar em perigo. Só para vocês verem como esse tipo de criação estraga a mente de uma pessoa e prejudica outras muitas em razão das atitudes que essa uma toma. Porque quando somos criados em um determinado meio, é muito mais difícil desconstruir conceitos que nos são impostos desde a infância, ainda mais quando tem “gente” que usa até violência para impor tal coisa nas nossas cabeças.
Imaginem então como foi a vida do João W. Nery na época da Ditadura Militar? Tendo que viver uma vida dupla, até 1972, porque corria o risco de ser espancado ou até morto porque a polícia sempre invadia os bares frequentados por gays, lésbicas e transformistas, que eram considerados pela maioria (LIXO) dos militares da época gente capaz de “corromper a juventude”. Como comentei no meu post anterior, só se deixa influenciar quem é “mente fraca”, porém, eu pergunto: ser uma pessoa mais respeitadora e mente aberta é ser necessariamente corrompido? Sinceramente, nunca acreditei nisso, pois tenho amigos gays e trans e jamais senti nenhuma diferença ruim no meu caráter. Aliás, sou uma pessoa muito melhor hoje devido a isso.
“Filha única de uma família de classe média, eu era, portanto a princesa da casa. Meus pais trabalhavam como bancários, e a vida não tinha grandes dificuldades. Mas o que eles não sabiam é que, diferentemente do meu estado físico de menina, eu nasci menino. E não estamos falando somente da aparência, mas, sim, de essência (alma). Um sentimento de estar em um corpo com qual você não se identifica.” – T. Brant, Eterno Aprendiz, página 139.
No entanto, não é porque uma pessoa é LGBT (o B não é de biscoito, é de bissexual, tá?) que necessariamente ela é perfeita porque isso não é bem assim. Inclusive o Tarso Brant comenta, na parte dele, intitulada Eterno Aprendiz, sobre ter sido cobrado a “escolher um lado” quando, até algum tempo atrás, ele se considerava “não-binário” (alguém que não considera nem homem e nem mulher, simplesmente uma pessoa). Quando li isso, fiquei: gente, como assim? Pessoal, se uma pessoa se considera de uma forma, quem somos nós para julgá-la e cobrar dela uma posição quando nós mesmos já somos cobrados por sermos o que somos? Além do mais, novamente pergunto: o fato da pessoa ser como ela é ou o que ela faz com a vida vai mudar o que na sua? A sua vida é tão ruim que é preciso diminuir a do outro para se sentir mais feliz? Sério, pessoas, melhorem. De preferência, procurem o que as façam felizes e deixem a felicidade do outro em paz.
Sim, apesar do que parece, eu sou cobrada de alguma forma e muito criticada por algumas escolhas. Já dei um exemplo de um ocorrido comigo no meu post anterior e vou dar outro agora...
Ano passado me aconteceu o seguinte: eu vi esse link (aqui), enquanto procurava informações sobre um lutador do qual sou fã e fiz um comentário dizendo que, como mulher, eu me sentia muito ofendida com isso. Adivinha o resultado? Uns dizendo que eu era um cara criando um “fake feminino” para aparecer. Então, não posso ser fã de pro-wrestling simplesmente por ser mulher? Mais ainda, tem gente ainda pensando que a beleza de uma pessoa tem de se sobrepor ao talento? Permita-me dizer, isso é MUITO ERRADO. Porque os fãs de hoje não são os de antigamente e como aqueles que botam dinheiro no bolso de quem faz esses programas, eles têm o direito, eu diria até o dever, de cobrar mais qualidade do show porque como diz aquele ditado: Beleza não põe mesa.
“Pausa para reflexão
Não sei se perceberam, mas eu era exatamente o estereótipo recriado de um machão, orgulho, possessivo. Vangloriava-me por ser o pegador como se isso fosse um “grande feito”. Que fase! Sabemos que a vida é mais do que ser o rei da balada e da baderna, certo?! Mas fiquem despreocupados. Para a tranquilidade de vocês e felicidade delas, não vou relatar as histórias de todas as namoradas (até porque tive sete). A partir de agora juro solenemente fazer algo de BOM (ok, vai demorar mais um pouquinho, mas não desistam de mim...).” – T. Brant, página 162.
(Eu pirei e a Barbara vai pirar quando reconhecer a referência. Quero ser amiga do Tarso para a vida inteira. *risos*)
Isso é só UM exemplo de um monte que eu poderia citar aqui, mas como esse texto está ficando mais longo do que eu esperava, vou terminar fazendo a coisa certa...
Muito fortemente indico Vidas Trans, um quarteto de corajosos relatos sobre ser transexual, livre de amarras sociais, tendo uma vida feliz e plena sem precisar da opinião alheia. Pois, como diria uma das irmãs da Mandy Candy (Amanda Guimarães), a Melissa Borges...
Ser transexual não é o fim do mundo, mas o recomeço de uma história com final feliz.
*Resenha postada no blog Rillismo
site: http://www.rillismo.com/2017/08/resenha-vidas-trans-coragem-de-existir.html