Ana Aymoré 07/03/2020Jamais tanta dor: o espectro cruel das ditaduras"¡Jamás [...] hubo tanto dolor en el pecho, en la solapa, en la cartera,/en el vaso, en la carnicería, en la aritmética!/¡Jamás tanto cariño doloroso,
jamás tan cerca arremetió lo lejos,/jamás el fuego nunca/jugó mejor su rol de frío muerto! [...]"
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Os versos de César Vallejo não apenas inspiram o título do romance de Diamela Eltit como são sua mais completa chave de leitura. Num espaço exíguo - "uma única célula clandestina enclausurada no quarto, com uma saída controlada e cuidadosa à cozinha ou ao banheiro" - uma voz narradora, uma mulher outrora militante de uma causa irremediavelmente perdida, empreende um tortuoso monólogo, com o qual interpela seu companheiro, com quem divide a solidão, o asco e a miséria. Do fosso de sua derrota, ela faz contas compulsivamente, trabalha numa função humilhante para trazer o pão que parcamente os sustenta e fala, fala para tentar escapar do horror que, desde o passado não mais possível de se mensurar, ainda a assombra: "Mas onde?, onde?, uma vez que o século nos desalojou. Cem anos já e, apesar de saber que tudo foi consumado num passado remoto, em outro século e, ainda mais, em outro milênio, mil anos na verdade, ali está o século recente inteiro ou os mil anos decrépitos, insidiosos, que riem com um gesto horrível ostentando sua esteira de desgraças."
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A palavra célula é a que mais se repete ao longo do livro, em sua dupla acepção: a célula revolucionária que contém, encapsuladas, as ações de resistência ao regime opressor, mas que, em contrapartida, impede os militantes de fazerem parte de um cotidiano minimamente humanizado, transformando-os de organismos celulares em máquinas, e reprimindo perigosamente suas paixões e fraquezas. Ainda mais, as ditaduras seguem arrastando ao presente, projetando ao futuro, seu rastro de horrores e crueldades na violência urbana, nas execuções sumárias, nos maus-tratos no interior do núcleo familiar, no expurgo social, no feminicídio - espectro que assombra a todos nós em seu papel de frio morto. Um dos mais belos, e mais dolorosos, romances que já li.