laura2367 15/12/2023
“Odiei as palavras e as amei, e espero tê-las usado direito.”
“?A Menina que Roubava Livros?”, drama ficcional e best-seller internacional do autor australiano Markus Zusak, é ambientada na Alemanha Nazista durante o período da Segunda Guerra Mundial, mais especificamente entre os anos 1939-1943, os quais, inclusive, a vida se esvaziava de maneira próxima da pequena protagonista alemã Liesel Meminger, a “?roubadora de livros?”.
Antes de tudo, é importante ressaltar que, apesar da nacionalidade, o autor é descendente direto dos filhos da guerra. Com pai austríaco e mãe alemã, ambos serviram de referência para a criação da obra. Ele, inclusive, informa que cresceu ouvindo a mãe contando sobre a vida escassa na pequena cidade onde nasceu, e que sempre ficava impressionado com as descrições dos cortejos de mortos-vivos formados pelos judeus que desfilavam pelos vilarejos a caminho dos campos de extermínio. Dessa forma, o autor pede licença para inserir entre as testemunhas do conflito mundial, a história Liesel Meminger. Essa personagem, que embora exista apenas nos limites da imaginação do autor e dos leitores, na verdade, representa fora da ficção as milhares de histórias de meninas alemãs, órfãos e filhos de alemães pobres, subordinados, que presenciaram de carne e osso as barbaridades do regime nazi-facista.
“?Quando a morte conta uma história, você deve parar para ler.”?
Essa é a mensagem escrita na contracapa da obra, convidativa ao leitor para imergir na leitura, pois é justamente a mórbida personagem, a ceifadora de almas, quem narra tudo.
Fugindo dos estereótipos banais que ao longo do tempo foram-lhe atribuídas, a Morte, sobretudo, se demonstra uma figura sensível que carrega diversas histórias, cada qual extraordinária por si só, sobre a existência humana. E dentre de uma legião dessas há a da garotinha alemã, a qual nos é especialmente apresentada, pois a narradora - tendo se encontrado com ela proximamente 3 vezes durante aqueles anos - se fascina com o sentido de existência que já a protagonista, mesmo ainda tão nova e vivendo o tormento daquele contexto, toma para si. A narradora se deslumbra com o que a menina viu e a maneira como sobreviveu.
A história de Liesel, então, se inicia quando ela tinha 9 anos, no trem com sua mãe e seu irmãozinho caçula, Werner. A caminho de um lar de criação, os menores estavam sendo levados para novos pais adotivos, no subúrbio de Mulching (Alemanha), aos arredores de Munique, na rua Himmel. A mãe, perseguida pelos nazistas por ser comunista, decidiu tomar tal atitude para sobreviver e garantir alguma segurança aos filhos, já que o pai havia sido preso pelo mesmo motivo. Entretanto, no meio da trajetória, o mais novo, já doente pelo enorme frio e fragilidade das condições que viviam - tuberculose e desnutrição -, veio a falecer, e este foi o primeiro contato de Liesel com a partida de uma alma.
No enterro, incrédula com a ida do irmão, resistia deixá-lo, e puxada pela mãe, se agarrou a única lembrança física que poderia ter do irmão, e logo, posteriormente, da própria mãe: um livro preto, “?O Manual do Coveiro?”, caído no chão repleto de neve daquele dia. Aqui, se deu início a uma sequência de roubos de livros, que deram o título para a garota. E ela, entretanto, ainda não havia aprendido a falar direito, tampouco a ler, porque raras vezes frequentara a escola naquele período que contraditoriamente foi o crescimento alemão.
É então na casa dos pais adotivos, Rosa e Hans Hubermann, mais especificamente com o pai - figura que com sua calma, logo cativa a garota -, que Liesel progressivamente será letrada.
Vale ressaltar que todo o processo e construção dessa jornada de aprendizado, que não se restringe aos papéis e letras, mas também se estende ao aprender da vida, é imaginado e expresso pelo autor de forma bela, delicada e sensível, em nuances, e sobretudo, bastante verossímil.
Os livros e as palavras se tornavam cada vez mais importantes para a protagonista, através da construção de significados e conexões do mundo exterior (o cenário alemão, o nazismo, o Fuhrer) com sua realidade particular (com as pessoas ao seu redor e pelo que todos passavam). De uma forma, os livros representavam uma certa estabilidade para ela. Absorver a delicadeza das mais diferentes histórias contidas nos pedaços de papéis foi a principal ferramenta que a ajudou a compreender a situação em sua volta, quando tudo era tão turbulento, ler e escrever a guiavam para a esperança, a ajudaram sobreviver.
Em certos momentos, num dos mais caóticos, na combinação de gentileza e brutalidade que os seres humanos são capazes de promover, se sentia ambivalente em relação às palavras. As palavras que eram usadas para se expressar de forma tão comovente e inspiradora também eram as mesmas utilizadas para propagar atrocidades.
“?As palavras. Por que que tinham que existir? Sem elas não haveria nada disso. Sem as palavras o Führer não era nada. [?] Do que adiantavam as palavras??”. Foi posteriormente, quando escreveu o seu livro, mais localizada e experiente, que disse ainda: “?Odiei as palavras e as amei, e espero tê-las usado direito.”? Dessa forma foi explorado as facetas da percepção da garotinha em relação ao que tanto a fascinou e salvou.
Outro fator essencial, é que narrando o cotidiano de Molching, revelam-se os detalhes que os próprios alemães, mais especificamente os mais pobres, sofriam daquele regime. Geralmente, pinta-se todos os alemães como nazistas, colaboradores de bom grado. E, na verdade, é revelado, pela revisão de relatos, que não é bem assim. Zusak abrea as janelas para os bastidores da Alemanha dominada por uma ditadura cruel e mostra a guerra sob a ótica dos alemães pobres, não da elite nazista que defendia os delírios de Hitler por conveniência política e financeira.
Famílias eram obrigadas a matricular seus filhos em escolas nazistas, a frequentar e aderir à Juventude Hitlerista; profissionais, para não serem denunciados e continuarem exercendo a profissão, além de não passarem mais fome do que já passavam, precisavam estar filiados ao partido do Führer. Toda a ideologia alienadora nazista se tornava cada vez mais aterrorizante, alcançando e subordinando a completa realidade de qualquer um, sendo boa parte vítimas do regime, como os retratados pelo autor. Houve coação, ameaça, fome, tortura, atentados e uma convincente propaganda cuja principal tarefa era colocar, principalmente os judeus, numa posição totalmente demonizada e desumana.
Os demais personagens, inclusive, são realmente muito bem trabalhados, dando destaque aos pais de criação, o amiguinho Rudy Steiner e Max Vandenburg.
A amizade de Liesel com Max, um judeu, filho de um especial amigo da Primeira Guerra Mundial que salvou a vida do Sr. Hans e que morou escondido no porão da casa dos Hubermann, renderam as passagens mais comoventes do livro para mim. O cuidado, a empatia, e o significado transferido de um pelo outro durante o medo que os cercavam foi realmente muito marcante para mim. Os desenhos, as histórias, os momentos compartilhados, tudo.
Também, não muito atrás, a amizade de Rudy, garotinho alemão muito fã do atleta norte-americano Jesse Owens, também trouxeram muito a doçura do ser infantil presente naquele cenário. A saída contínua da ingenuidade sobre o seu redor, mas também a forte maturidade desde já, compôs o companheirismo de ambos, formando a linda amizade e amor desenvolvidos.
A própria forma de amar, dura, matuta, aversa ao toque, de Rosa, sua mãe de criação, e a cumplicidade que se progride com a retraída Liesel mostra o encaixe tão delicado naquele cenário. Fora o pai, figura que desde o começo conquistou a afeição de Liesel, com sua forma calma e paciente de ser, empático e alegre com seu acordeão. Foi o principal responsável por ensinar a Liesel uma das coisas mais preciosas que ela poderia ter aprendido: ler e escrever.
(*Obs: inclusive, a representação lírica que o autor faz das percepções comparativas de Liesel entre o pai e o seu acordeão no final do livro, é simplesmente de apertar o peito de lindo.)
É dessa construção incrível de personagens e laços que contribuem para que os últimos capítulos sejam tão tocantes e certamente brutais, dolorosos, desamparando o coração de cada leitor que foi cativado.
No final do livro, ademais, há também o grande desfecho sobre a morte em relação à humanidade, a experiência humana de existir.
A obra alcançou um estrondoso sucesso, estando desde sua publicação (2005; no Brasil, 2007) por mais de 500 semanas na lista de bestsellers do New York Times e em 1º lugar por anos na lista de mais vendidos no Brasil. E em 2013, foi adaptada para filme, ganhando mais popularidade ainda nos cinemas, canais de televisão e na ascensão das plataformas de streaming.
Pessoalmente é uma obra que verdadeiramente me emocionou muito, da primeira até a última página ela me marcou. A delicadeza expressa me cativou, a forma que foi escrita também, com anotações, dicionários, desenhos. Tudo contribuiu para que muita informação fosse exposta sem que perdesse a qualidade ou deixasse prolixo. Tive inclusive a dificuldade de posteriormente raciocinar que tudo que li, para mim tão real, na verdade, não era. Entretanto, confesso que contanto que esteja vivo dentro das pessoas que leram, que tocaram e tocam ainda os corações, já é o suficiente para suprir esse meu desamparo por ficar tão comovida com uma história fictícia; afinal, isso é a maravilha que a arte nos proporciona, assim como a própria Liesel, com certeza, concordaria.
Li pelo Kindle, e mesmo assim, fiz questão de logo em seguida comprar o livro físico para tê-lo por perto, anotado, marcado, certamente um sentimento que cresceu em mim de querer mantê-lo bastante próximo, seguro.
Sobre o filme, assisti algumas poucas vezes quando mais nova, na sessão da tarde, mas me lembro pouco, na verdade, apenas de uma das cenas mais marcantes: a final entre Liesel e Rudy. Qualquer momento terei o enorme prazer de revê-lo, mas agora, já tendo contato com a original.
Enfim, me empolguei e acabei me prolongando um pouco, mas agradeço pela incrível experiência e obviamente indico para qualquer um esta obra.