spoiler visualizarMatheus.Correa 21/04/2024
Floresta Sombria é um livro sobre esperança...
"A formiga marrom tinha esquecido que aquele lugar já fora sua casa. Para o crepúsculo da Terra e para as estrelas que começavam palidamente a aparecer, o intervalo de tempo talvez fosse insignificante, mas não para a formiga, que tinha a impressão de que séculos haviam passado. Em dias já esquecidos, seu mundo havia virado de cabeça para baixo: o solo alçara voo, deixando um amplo e profundo abismo, antes de voltar a ser preenchido, completamente. Em uma das extremidades da terra remexida havia uma solitária formação preta. Este tipo de coisa costumava acontecer muito naquele vasto território: a saída e o retorno da terra, abismos abertos e preenchidos, formações rochosas que despontavam como marcadores visíveis a cada transformação catastrófica. Durante o pôr do sol, a formiga e centenas de suas irmãs haviam escoltado a rainha sobrevivente para estabelecer um novo império. Aquele retorno era só um acaso em sua busca por comida." - E assim tem o começo de À Floresta Sombria, com uma pegada minimalista do mal eminente e de como o universo cresceu, ele expandiu de uma maneira absurda, e o enriquecimento do conhecimento tange entre os dedos de um cientista com um propósito. O conhecimento e suas facetas e a característica brutal da invariável estupidez humana, solidifica a crítica iminente de uma obra genuinamente crítica, o ser humano pode se tornar tolo ao querer conhecer de mais.
A formiga vista de uma floresta e a sua perspectiva mínima de números que exploram um conhecimento que talvez, seja muito, muito complexo, muito acima.
"? Mas? a nossa civilização é a única que conhecemos por enquanto. ? E é por isso que ninguém nunca estudou sociologia cósmica. A oportunidade está nas suas mãos. ? Fascinante, dra. Ye. Por favor, continue. ? Penso que é possível unir as suas duas disciplinas. A estrutura matemática da sociologia cósmica é muito mais clara que a da sociologia humana. ? Por que a senhora diz isso? Ye Wenjie apontou para o céu: o pôr do sol seguia iluminando o oeste. Como ainda era possível contar as estrelas que despontavam, era fácil lembrar como o firmamento estivera pouco antes: uma imensidão vazia e azul, ou um rosto sem pupilas, como uma estátua de mármore em um jazigo. Agora, embora fossem poucas as estrelas, os olhos gigantes tinham pupilas. O vazio estava preenchido. O universo enxergava. As estrelas eram minúsculas, meros pontos cintilantes de prata que insinuavam algum desconforto por parte do escultor cósmico, que se sentira compelido a cobrir o universo com pupilas, mas tinha um terror absoluto quanto a lhe conceder a visão." - E aqui que a gente percebe a expansão daquilo que antes era um ponto, se tornando um ecossistema.
A urgência dos acontecimentos e a forma como vão escalonando é de tirar o fôlego e os diálogos, que pareciam monólogos, caem por terra, dando lugar ao dinamismo e que embora a obra seja maior do que seu primeiro livro, mostra um autor muito mais objetivo em mostrar todos os seus métodos e ideias e aqui entre nós, eles são formidáveis. Segue um exemplo de um diálogo:
"Zhang Beihai se virou para Wu Yue. ? Você está deprimido diante da ideia de entrar em uma guerra cuja derrota é inevitável. Tem inveja daquela derradeira geração que vai ser jovem o bastante para combater na força espacial e ser sepultada no espaço, junto com a frota. Você tem dificuldade em aceitar que vai dedicar uma vida inteira para uma iniciativa inútil. ? Tem algum conselho? ? Não. O fetichismo e o triunfalismo tecnológicos estão profundamente arraigados na sua mente, e descobri há muito tempo que não posso mudar você. Só posso tentar minimizar o dano que essa mentalidade causa. Além do mais, não acho que seja impossível que a humanidade ganhe essa guerra." - Tem muita urgência nesse momento, não tem piada, precisa ser congruente e o é. O autor não quer mostrar sua capacidade profunda em ministrar tantos conceitos e axiomas. Ele expande em humano o complexo. Porque seres humanos são complexos.
O Autor ainda da uma pitada de metalinguagem, abordando a literatura de maneira segura em uma crítica ou subvertendo a crítica (eu realmente não consigo descobri qual dos dois conceitos é ainda mais genial); mas ele diz assim, pela voz de um dos personagens: "Mas as pessoas que praticam literatura hoje em dia perderam essa criatividade. A mente delas só é capaz de gerar fragmentos arruinados e monstrengos, cujos breves sopros de vida não passam de espasmos incompreensíveis destituídos de razão. Depois, elas jogam todos esses fragmentos dentro de um saco e fecham com um rótulo de ?pós-modernidade? ou ?desconstrucionismo? ou ?simbolismo? ou ?irracionalidade?.
E sim, eu só estou falando do começo, pelo menos de suas primeiras 100 páginas.
Além de tecnologias referentes à física e a engenharia da computação, a qual o autor é formado, temos a combinação magistral da neurociência, que não é apenas jogada ao ar, mas que através de uma narrativa tangível, incorpora perfeitamente ao enredo. A partir da descrença na vitória há a criação de um selo neural, que irá desencadear a fé na vitória. Independente dos recursos excasos e do safon (lançado pelos trissolarianos).
"Durante a Guerra da Coreia, meu avô atacou um tanque Pershing com uma granada. A granada bateu na blindagem e deslizou para o lado antes de explodir. O alvo mal sofreu um arranhão, mas meu avô foi atingido por tiros da metralhadora do tanque, quebrou as duas pernas debaixo da lagarta e ficou inválido pelo resto da vida. Agora, na comparação com dois camaradas do mesmo regimento, que acabaram completamente esmagados, ele teve sorte? Foi a história desse exército que nos ensinou tão bem a importância do desnível tecnológico em tempos de guerra. A glória que vocês conhecem é a contada pelos livros de história, mas nosso trauma foi sedimentado pelo sangue de nossos pais e avós. Nós sabemos melhor do que vocês o que significa ir à guerra."
É tanto diálogo bom, com camada e explicativo que passear pelas páginas é compreender o potencial de toda uma sequência de livros e a capacidade absurda de seu autor em passear por tantos cenários de uma maneira tão simples e orgânica. No meio de caos que uma gota acometeu a todo um exército, há posicionamentos e mensagem de paz. Há afeto nessa obra.
As últimas páginas são assustadoras, fortes e de um impacto que não me recordo ler com tanta frequência na ficção cinética e esse apelo me pega muito. O livro é uma arma de expressão. Uma potencialidade e aqui temos o exemplo de livro Raíz, tão citado por Deleuze. São invariáveis linhas de uma mesma árvore. Esperança.
A floresta sombria termina assim: "? Por favor, receba o nosso respeito ? disse Luo Ji. Só gostaria de discutir uma possibilidade com você: talvez haja sementes do amor em outros lugares do universo. Nós deveríamos incentivá-las a brotar e crescer. ? Essa é uma meta pela qual vale se arriscar. Sim, podemos nos arriscar. ? Eu tenho um sonho de que, um dia, o sol forte iluminará a floresta sombria. O sol estava se pondo. Só uma ponta dele era visível para além das montanhas distantes, como se o cume da cordilheira estivesse incrustado com uma joia de brilho deslumbrante. A grama e a criança que corria ao longe estavam banhadas pelo pôr do sol dourado. O sol vai se pôr daqui a pouco. Sua filha não está com medo? ? Claro que não. Ela sabe que o sol vai nascer amanhã de novo." - O Autor, mesmo mostrando o quão pequena formiga é o humano para a perspectiva do universo, ele é preenchido de esperança, o que torna esse livro poesia científica. Não menos.