Paulo 07/10/2018
Parando pra olhar os comentários por aqui, fica claro que Leões de Bagdá, apesar de ser unaminidade entre a crítica especializada, divide a opinião dos leitores. E acho que isso é fácil de entender. Eu mesmo li a HQ duas vezes, na mesma semana. Na primeira, achei uma história OK, legalzinha, mas nada demais, uma dessas aventuras de animais na vida real, como o filme A Incrível Jornada, e não compreendi todo o “hype” em cima deste material. Porém, na minha segunda leitura, entendi o porquê de todo esse “auê”, e compreendi a genialidade por trás da obra de Brian K. Vaughan, saboreando, dessa vez, cada diálogo do roteiro do jovem roteirisita. O que aconteceu entre as minhas duas leituras? Simples, eu li os comentários do autor sobre quem cada um de seus personagens representavam dentro do contexto da sociedade iraquiana, e li um pouco sobre a Guerra do Iraque. Me senti novamente na escola, e tenho a humildade de reconhecer que me faltou a sensibilidade de captar essas minúcias durante minha primeira empreitada, e que, ler o material reconhecendo quem os leões, os macacos, o urso, a tartaruga, os antílopes, etc. representam naquela sociedade modificada pelo regime de Saddam, transforma, sim, a experiência de leitura.
Leões de Bagdá conta a história de um bando de leões que escapou do Zoológico de Bagdá durante um bombardeio norte-americano, na primavera de 2003. Perdidos, confusos, famintos e finalmente livres, os quatro leões perambulam pelas ruas de Bagdá, numa batalha desesperada pela sobrevivência. Inspirando-se numa história real (em abril de 2003, um bando de leões famintos de fato escapou do Zoológico de Bagdá após bombardeios norte-americanos...), Brian escreve uma fábula contada da perspectiva de um bando de leões para questionar algumas coisas sobre a recente guerra dos EUA contra o Iraque. Nossos leões são dois machos e duas fêmeas. Zill é o “oportunista benevolente”, um leão que secretamente reza para que o iminente cataclisma o liberte de sua cela, apesar de pragmaticamente se preparar pra mais do mesmo. El-Awra é a mais velha do bando, uma leoa que quase morreu nas mãos de outro leão quando estava na vida selvagem, e não consegue entender como alguém pode querer deixar o zoológico, pois nele o único preço pela segurança é um pouco de liberdade. El-Awra representa os iraquianos que lembram das barbáries e crueldades das tensões sectárias e pobreza extrema que presenciaram durante a juventude e que alegremente se sujeitam ao regime de Saddam em troca da relativa estabilidade que ele ajudou a criar. Halima é uma leoa que fora tirada ainda muito jovem da vida selvagem e mal lembra da vida em liberdade, mas tem certeza que é melhor do que o cativeiro. A leoa representa os jovens reformistas iraquianos, aqueles que querem democracia de fato no seu país. Já Bukra é um filhote nascido em cativeiro, que não conhece nada da vida fora do zoológico e representa as crianças iraquianas inocentes, que não tem opinião sobre Saddam, George Bush ou sobre qualquer coisa além de sua própria família e amigos. Todos os outros animais representam as diversas facções sectárias da sociedade iraquina, incluindo o urso Fajer, uma metáfora para os fiéis a Saddam, que usam da violência na esperança de manter o status quo.
E, é claro, não podemos deixar de citar o próprio zoológico, que também é um personagem importante desta história, representando o regime ditatorial de Saddam. Da mesma forma que o Iraque pré-guerra era para seus cidadãos comuns, o zoo é uma prisão para os animais que o chamam de lar. Eles têm negadas diversas liberdades que seus irmãos selvagens desfrutam, e enquanto alguns animais passam muito bem, outros sofrem e até morrem em cativeiro. Ainda assim, garante um certo nível de conforto e segurança que os animais temem perder se ousarem abandonar suas jaulas.
Dito isso, enquanto na superfície a história possa parecer uma dessas aventuras de animais na vida real, como o filme A Incrível Jornada, o subtexto e o tema principal são adultos. Qual o verdadeiro significado de liberdade? É mesmo melhor morrer um homem livre do que viver escravizado, por pior que seja essa vida como homem livre? A liberdade pode ser dada ou apenas conqiustada por meio de luta e sacrifício? Será que os EUA ajudaram a acabar com o terrorismo declarando guerra ao Iraque.. ou apenas ajudaram a criar uma nova geração de terroristas? Algumas mensagens são passadas de maneira melhores do que outras, mas Leões de Bagdá é definitivamente uma obra ímpar, que deve ser lida e relida mais de uma vez, pois cada releitura desperta novos pontos de reflexão e ajudam a entender melhor o contexto da guerra do Iraque. O trabalho, inclusive, daria um excelente material complementar para os estudantes do Ensino Médio, servindo de material para discussões em sala de aula.
Nota: 9.00