Gabriela 17/11/2023
Almas Mortas: um inovador retrato da sociedade russa
Nikolai Gógol iniciou os rascunhos para Almas Mortas em 1835. Escritor perturbado e um tanto inseguro, Gógol encontrou inúmeras dificuldades no decorrer do desenvolvimento de sua obra, supostamente inspirada na estrutura dividida em três partes do clássico poema épico ‘‘A Divina Comédia”. Repara-se facilmente um certo receio por parte de Gógol, expresso em repetições na narrativa e quebras de ritmo durante a obra, mas sem dúvida o amor que ele tinha para com a literatura e o estudo de sua pátria se sobressaem a estes percalços. Gógol afirma: “Não posso entregar os últimos volumes de minha obra antes de conhecer, o melhor possível, a vida russa em todos os seus aspectos, ao menos na medida em que me é necessário conhecê-la para minha obra.”, em demonstração de anos de estudo e reflexão sobre a Rússia do século XIX. Esta sede por conhecimentos está presente em todo o conjunto da obra, fazendo-me perceber o quão relevante é o estudo da literatura gogoliana para melhor compreensão dos aspectos culturais, sociais e econômicos de uma Rússia antiga e camponesa, que deparava-se cada vez mais com influências estrangeiras, procurando ainda uma identidade em meio a tamanha vastidão.
Almas Mortas inicia com uma descontraída descrição do nosso herói protagonista, Tchítchikov, homem médio, sem grandes virtudes, sem grandes feitos, sem grandes ambições, puramente mesquinho, frágil e sem valor. Gógol afirma, enquanto narrador personagem, que toda a sociedade russa carrega um pouco de quem é Tchítchikov, seja nas qualidades ou nos defeitos. Aprecio esta escolha de personagem como protagonista, especialmente por permitir o divertido humor que descobri, não sem surpresas, ser o grande pilar desta obra. Este homem tão medíocre representa muito bem o que Gógol expressa durante o poema; os desfalques e problemas da Rússia, a injustiça e a falsa moralidade que parecem construir a sociedade, tudo está presente em Tchítchikov. Um dos aspectos mais fascinantes desta leitura é entender qual foi seu impacto dentro da produção artística russa, na qual Gógol iniciou uma escola romântica e particularmente crítica, onde fantasias sobre personalidades perfeitas e infinitas virtudes abrem espaço para uma representação mais realista, que considera os defeitos russos e os estuda em suas personagens. Estas características apresentam-se em todo o decorrer da obra, onde cada figura que Tchítchikov visita representa algo que se possa criticar, algo que se possa refletir. Manílov é mentiroso, falso e parece nunca dizer o que realmente pensa. Koróbotchka é simplória e pedante, simboliza os senhores em crise, o vazio de terras que pouco produzem. Nozdriov é insistente e impulsivo, nunca aceita a mímica discordância e importa-se apenas consigo mesmo. Sobakiévitch é rude, sente repulsa para com todos que se aproximam e tem a gula de um batalhão. Entre todas as figuras apresentadas pode-se observar ao menos um aspecto negativo da elite russa, e, mesmo que esta estrutura torne-se um tanto entediante no decorrer da história, acredito que a elaboração crítica é um ponto forte em Almas Mortas, exatamente por estabelecer novos parâmetros na construção de personagens e conflitos na escrita russa.
Após o encontro de Tchítchikov com tantas personagens distintas, a história retorna para a província, onde nosso herói desponta como grande conquistador aos olhos da população. É uma mudança agradável para a narrativa, que encontrava-se monótona e repetitiva. Neste novo momento, são desenvolvidas perspectivas do convívio urbano e retrata-se um pouco do tão relevante serviço público russo. É nessa sequência, ao final da história, que somos apresentados às origens de Tchíchikov; seus anos escolares, sua afinidade com a retórica, suas conturbadas relações sociais e, finalmente, o motivo pelo qual percorreu tanta estrada em busca de Almas Mortas.
Acredito que não era necessário esperar tanto tempo para detalhar circunstâncias tão relevantes para a narrativa e, como Gógol mesmo admitiu, esta parte final de Almas Mortas é um tanto acelerada demais, não aproveitando corretamente a interessante construção de personagem nem a variação no ritmo que poderia ter sido muito positiva. Porém, esta finalização traz uma agradável perspectiva para as outras partes da obra, um sentimento de que a Rússia ainda não foi descoberta por completo, onde ainda existe espaço para novas expectativas.
“Não é também assim que você, Rus, voa em disparada, como uma troika que ninguém consegue alcançar?”