Lisa 21/01/2024
Mestre das palavras
Prokliatie voprossi foi uma expressão russa popular na Rússia do século XIX, significando "Malditas questões" e se refere as questões últimas, ou seja, as grandes perguntas que atormentam o ser. Como poucos, Tolstói se dedicou desde jovem a tentar compreender e buscar respostas para elas. Podemos ver ao longo de toda a sua prosa sua fome por saber, "A Morte de Ivan Ilitch" sendo, talvez, o exemplo mais nítido e compacto disso. Assim sendo, Guerra e Paz não foge à regra, levantando durante toda a história questionamentos sobre o sentido da vida, do homem na terra com o tão querido, por mim, Príncipe Andrei. Com o não saber eterno do atrapalhado Pierre em como agir, em discernir o moral e entender o mundo.
Uma característica marcante do Tolstói é sua busca e gosto pelo conhecimento. Aqui vemos toda sua capacidade de pesquisa em ação, Guerra e Paz não nasceu como inicialmente seu autor pretendia. Tolstói queria narrar sobre o movimento dos Decembristas em 1825, mas incapaz de ser enxuto, quanto mais estudava, mais tinha a dizer, retrocedeu a 1812 somente para concluir que maior recuo seria preciso, e é 1805 que decide iniciar sua história. Que o nosso condinho estranho é prolixo disso o sabemos, que o faz bem, o sabemos ainda melhor. Mas em nenhuma outra obra, teve tanto a dizer como nessa.
Dividida em 4 tomos e 2 volumes a obra se inicia com os eventos que levaram a derrota colossal do Império russo pelas mãos das tropas napoleônicas, a famosa batalha de Austerlitz. Nesse começo, é possível notar porque Tolstói é O Tolstói. Sua prosa leve, que flui como música encanta, a facilidade com que insere personagens (500 personagens) e a habilidade de descrição são de assombrar. Mas acima de tudo, seu humor cínico é o que mais me conquista sempre.
Tolstói foi um grande crítico da alta sociedade, de suas ambições e superficialidades, mas para fazê-lo não ofende, briga, ou discursa, ao invés nos insere no dia a dia da nata, descortina seus atos, revela e insinua a função daqueles comportamentos e nos deixa enxergar com a clareza cristalina do espelho d'água que criou, toda a incongruência desse mundo. Pierre é o maior responsável por isso nesse início. "Agora, o que quer que ele falasse, tudo se revelava charmant", ele que a dias atrás era o bastardo gordo e que se antes inadequado e tolerado, ao amanhecer herdeiro, torna-se belo e apropriado.
Nenhum autor que conheço, critica seus personagens como Tolstoi, nenhum passa pano para os mesmos também. Se Helene é belíssima, com "o sorriso de uma mulher bela em tudo", Maria em seu extremo possuía aquele "rosto feio e lamentável"; Anatolie belíssimo com seus "olhos grandes e lindos" mas que "mal chegava a pensar" de tão oco; Hippolyte, coitado, além de "uma feiura chocante" tinha "o rosto ensombrecido por um idiotismo". Confesso que essas descrições, que o autor não nos deixa esquecer, me diverte até os dias de hoje.
No Volume II, a experiência que tive mudou e muito. Se na primeira parte estamos descobrindo que rumo o livro tomará, conhecendo os personagens e seus desenlaces, enquanto acompanhamos as aulas de história bélica, na segunda, vamos nos fatigando ao sentir não chegar a lugar algum. Os soliloquios do autor se exarcebam em frequências absurdas, sua opiniões ácidas e críticas a ciência e a respeitabilidade da história vão nos cansando a medida que o romance é jogado para escanteio.
É um fato que sou apaixonada pelo condinho, mas não sofre de amores cegos. Me vi concordando com a ruma de críticas que o romance recebeu por todos os lados, de seus colegas como o Turgueniev e Flaubert, a Bielinski e Botkin até especialistas e heróis de guerra. Apesar da vasta pesquisa, Tolstói é inexato, deturpa e altera fatos históricos, não por não compreender, ou por licença artística, mas sim, por puro proselitismo, por ideologia própria. Em sua própria concepção de certo e errado, falsifica detalhes históricos para fundamentar sua visão. Confesso que essa foi a minha maior decepção.
Nessa sede, deixa de desenvolver os arcos criados, deixando personagens mal aproveitados, acontecimentos importantes mencionados quase como notinhas de rodapé pelo caminho. Tolstói escreveu uma revisão histórica tendenciosa e enviesada, a escondendo ao criar arcos de personagens, chamando-o de Romance.
Por fim, como diz Botkin, o elemento intelectual é fraco, a filosofia é trivial e superficial, a negação é um amontoado de sutilezas místicas, "mas, afora isso, o dote artístico do autor é inquestionável." No fim, o
Tolstói sempre será O Tolstói, esse gigante da literatura, mestre dançarino da palavras, deleite de nossos olhos.