Jéssica 22/08/2022
Um compromisso com a ancestralidade
Em combate ao esquecimento, Eliana Alves Cruz reinventa as histórias dos muitos personagens de sua linhagem a partir das lembranças da velha tia Anolina, percorrendo os passos que seus antepassados fizeram desde o roubo em África à submissão a uma nova vida de violação e resistência no Brasil. Diante de uma longa história que ultrapassa gerações de sua família, Cruz situa-os no contexto histórico à época, segunda metade do século XIX e durante todo o século XX, reconhecendo os impactos da proibição do tráfico transatlântico, as relações escravocrata-escravizado, posteriormente a Guerra do Paraguai, epidemias, a declaração da Lei Áurea, a instituição da República, o declínio da então aristocracia; realça, ainda, as sequelas e os fantasmas do colonialismo nos ditos tempos de "liberdade".
Existem alguns furos na narrativa devido a falta de informações, certos personagens são pouco desenvolvidos, em especial Dodó e os subsequentes ? já na reta final da obra ?, e alguns episódios históricos poderiam ter mais atenção, mas a autora entrega o que propõe. Consegue bem explicitar a relevância da religiosidade e dos laços entre a comunidade negra, que se rearranjava em uma rede de resistências que sobreviveu ao tempo, desde Firmino à própria Eliana; contando o cotidiano em prol da distância das amarras com a subserviência da nova escravidão. Ou, simplesmente, como cantou Gil: "Mesmo depois de abolida a escravidão/Negra é a mão de quem faz a limpeza/Lavando a roupa encardida, esfregando o chão/Negra é a mão, é a mão da pureza/Negra é a vida consumida ao pé do fogão/Negra é a mão nos preparando a mesa/Limpando as manchas do mundo com água e sabão/Negra é a mão de imaculada nobreza".
Nesse sentido, foi durante o período pós-abolição que resguardava uma luta diária contra a precariedade da vida, que Martha, Daminana e Celina puseram uma nova ótica sobre a educação e suas possibilidades de mudança ? frutos que seriam colhidos na admissão de Eloá em uma faculdade de direito.
Percorrendo pelas inúmeras tramas, nascimentos e mortes, trabalho e diversão, barrela ou educação, a autora constrói uma história em muito rica, marcada pelas dificuldades e o sentimento esperançoso pelo futuro, em favor da vida. É uma obra que não acaba, que se permite contar a vida de todos, que retorna ao passado para dizer o agora, para se reconhecer no agora. Cruz, assim, recompõe as peças de sua família.