Alguma Resenha 04/01/2021
Neste romance, José Saramago aponta as fragilidades da democracia
Antes do lançamento de Ensaio sobre a lucidez, em 2004, José Saramago afirmou que o seu novo livro causaria tanta polêmica quanto O evangelho segundo Jesus Cristo, sua obra-prima lançada em 1990. Apesar de o título remeter a Ensaio sobre a cegueira e o autor ter feito comparação com o Evangelho segundo Jesus Cristo, Ensaio sobre a lucidez fica longe de alcançar o nível de qualidade dessas duas obras do genial escritor português.
Este livro continua os eventos de Ensaio sobre a cegueira: quatro anos após a epidemia de cegueira branca ter assolado a capital de um país fictício. Agora, a cidade enfrenta uma nova epidemia, o do voto em branco. Nas eleições municipais, 83% do eleitorado anulam seus votos e o restante são divididos entre os três partidos que disputam a eleição, o partido da direita, o do meio e da esquerda. Governado pelo partido da direita, o governo do país enxerga o resultado do pleito como ato de anarquia e uma ameaça à democracia. A partir de então, acompanhamos os líderes políticos elaborando ações para descobrir as razões por trás do resultado e medidas para frear esse movimento revolucionário.
Os líderes políticos, no caso, são o primeiro-ministro, o ministro do interior e o presidente da nação. Na primeira parte do livro, os três assumem o protagonismo da narrativa e se metem numa disputa para ver quem toma a decisão mais estúpida e autoritária para resolver o problema. Já na segunda parte, as personagens de Ensaio sobre a cegueira retornam e matam curiosidade do leitor acerca do destino delas após eventos narrados no livro.
Aliás, esse é o grande problema do romance. Na primeira metade, a leitura não engrena. São narrados diversas reuniões do conjunto de ministros que compõe o governo e os efeitos das decisões tomadas por eles. As três personagens principais – o primeiro-ministro, o ministro do interior e o presidente – são pouco desenvolvidos e quando o autor opta narrar diferentes eventos dentro da capital, ele escolhe personagens ocasionais. Tais escolhas dificulta a conexão emocional do leitor com a obra, o que mantém os níveis de tensão com a narrativa em patamares baixos.
Quando os protagonistas do Ensaio sobre a cegueira aparecem, a narrativa torna-se fluida, porque agora temos um protagonista bem desenvolvida pelo narrador para acompanhar na parte final do livro, o comissário de polícia: um enviado para investigar uma possível ligação entre o fato da mulher do médico não ter cegado, durante a epidemia branca, com a esmagadora maioria dos votos em branco.
Em relação ao tema, o romance de Saramago traz questões importantes sobre a fragilidade dos regimes democráticos. Sob o pretexto da massa dos votos em branco serem uma ameaça à estabilidade democrática do país, o ministério, composto por membros do partido da direita, elaboram uma série de medidas que suprimem os direitos da população, cerceiam a liberdade de imprensa. Nenhuma delas, no entanto, dão resultado, ao contrário, tornam mais grave a situação.
O primeiro-ministro, seduzido por pensamentos tirânicos, se aproveita da situação para buscar centralizar o poder em suas mãos. Enquanto o ministro do interior, procura crescer dentro do partido, encontrando no chefe de governo um obstáculo. Já o presidente, frustrado por não possuir tantos poderes, busca alguma relevância política.
Embora lembre em alguns momentos a situação política brasileira, a obra se diferencia justamente na sensatez do ministro da justiça apresentado no livro: inconformado com as atitudes autoritárias tomadas por seus colegas, o ministro clássica o ato dos cidadãos como uma manifestação de lucidez.
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