Fran Kotipelto 09/04/2011
"Pois se foi permitido ao homem, tantas coisas conhecer,é melhor que todos saibam,o que pode acontecer."
Num dia comum, como outro qualquer, mergulhado na sina da rotina que insiste em nos desafiar, crianças sorriem porque neste dia não haverá aula, professores sorriem porque não darão aulas para crianças que gostariam de estar em casa vendo tv, os adultos já estão acostumados a se sentirem frustrados, as mulheres então aproveitam este dia pra se distrairem e comentar mais detalhadamente como andam as vidas dos vizinhos,os homens, reclamam porque não haverá jogo de futebol durante a tarde, e os miseráveis e extremamente miseráveis ficam absurdamente contentes, porque chegou o momento mais importante do ano: o dia de vender o voto por alguns trocados.
Enquanto isso as garotas se arrumam e se perfumam, jogam o recato no lixo e estão muito confiantes porque já escolheram os candidatos mais bonitos, e que com certeza merecem o voto delas. Os garotos, por sua vez, acordam ansiosos para comparecer às suas sessões eleitorais, porque acreditam que é uma ótima oportunidade de verem as garotas sem recato e quem sabe, conseguir executar seus atos de concupiscência desvairada.
Agora vamos aumentar o volume e ouvir “Brasil” ao som de Cássia Eller, costuma causar um impacto maravilhoso, quando o assunto é política, ou no caso, “lucidez”.
Numa manhã de votação (do mesmo jeito que acabei de narrar acima)que parecia como todas as outras, na capital de um país imaginário (que vamos chamar de Brasil), os funcionários de uma das seções eleitorais se deparam com uma situação insólita, que mais tarde, durante as apurações, se confirmaria de maneira espantosa.
Aquele não seria um pleito como tantos outros, com a tradicional divisão dos votos entre os partidos "da direita", "do centro" e "da esquerda"; o que se verifica é uma opção radical pelo voto em branco,exatamente isso, votos em branco. Usando o símbolo máximo da democracia - o voto -, os eleitores parecem questionar profundamente o sistema de sucessão governamental em seu país.
É essa "lucidez reflexiva" que "Ensaio sobre a Lucidez" aborda.E na trama Saramago retoma personagens e situações, revisitando algumas das questões éticas e políticas abordadas no também magistral romance "Ensaio Sobre a Cegueira".
Ao narrar as providências de governo, polícia e imprensa para entender as razões da "epidemia branca" - ações estas que levam rapidamente a um devaneio autoritário -, o Saramago faz uma alegoria (muito comum em seus romances)da fragilidade dos rituais democráticos, do sistema político e das instituições que nos governam.
E ele propõe não é a substituição da democracia por um sistema alternativo, mas o seu permanente questionamento. Levantando questões como sempre excepcionais, "e se conscientemente e espontaneamente, a população invalidasse uma eleição, votando em branco?", "e se conseguíssemos nos organizar sem precisar de políticos ou partidos?","e se nos desprendêssemos da ideia da ideia de organização social-política em que vivemos,e a vida continuasse em seus trilhos?"
Assim como em "Ensaio Sobre a Cegueira", nesse livro "a mulher do médico" é fio condutor da trama.Ela é apenas uma das eleitoras,uma das pessoas naquela comunidade que se organizou como pôde, para continuar a viver em liberdade. E é através dela que vemos sintomas de paranoia e teorias conspiratórias combatendo com a lucidez e serenidade,violência respondida com paz, ameaça com silêncio.
Um romance que não só nos chama atenção para o despertar de questões políticas,mas também para nosso amadurecimento como seres humanos, a razão é a única coisa que nos distingue dos animais,então que possamos usá-la com sabedoria, porque assim ao invés de mães clamarem lamuriosamente por justiça nos telejornais, nós poderemos conclamar alegremente que conseguimos realmente fazer jus à célebre frase que nosso imperador entoou às margens do riacho Ipiranga: "Independência ou Morte".