jota 05/06/2013Lucidez, cegueira e canseiraEnsaio Sobre a Lucidez, pela situação insólita que apresenta, lembra um pouco outro livro de Saramago que li ano passado, o engraçado As Intermitências da Morte. Não apenas porque a ação se passa num país ou lugar imaginário (que é, quase sempre, a cara de Portugal, claro), já um fato recorrente em várias obras dele, mas também por conta de seus infindáveis parágrafos, diálogos caudalosos (caso deste livro) e pontuação particular: ah, como sofre o leitor que se distrai um pouco durante a leitura! Então, não recomendaria Lucidez para quem vai ter o primeiro contato com a obra de Saramago e que desconheça certas particularidades de seu modo de contar histórias.
Algo mais leve, curto e interessante para conhecer sua escrita seria o livro Caim. Além disso, há em Lucidez várias referências a uma cegueira branca de “quatro anos atrás”, conforme afirma um personagem em certo trecho: “(...) alguma ligação terá de haver entre a recente cegueira de votar em branco e aquela outra cegueira branca que, durante semanas que não será possível esquecer, nos pôs a todos fora do mundo.” Ele está se referindo a uma situação que Saramago explorou em Ensaio Sobre a Cegueira. Livro que conviria, talvez, ser lido antes deste.
Mesmo porque alguns personagens de Cegueira participam da ação aqui e outros são mencionados, especialmente quando estão em cena dois agentes policiais, que se comunicam pelos codinomes de Albatroz e Papagaio-do-Mar, encarregados de investigar o, digamos, “crime do voto em branco”. Então, se o leitor tampouco viu o filme de 2008 (Blindness, dirigido por Fernando Meirelles), pode ser que fique sem entender alguma coisa. Ou não, não sei.
Em Intermitências as pessoas paravam de morrer; em Lucidez, de início, quase ninguém aparece para votar num domingo de eleição regional, embora tivesse sido um dia chuvoso demais. Como diz Saramago, “(...) não eram quatro pingos míseros, eram baldes, eram cântaros, eram nilos, iguazús e iangtsés.” Depois, dos que compareceram, vê-se que a maioria optou por votar em branco. Estupefatas e contrariadas, as autoridades convocam então outro pleito para um domingo depois, e desta vez os eleitores comparecem maciçamente. Mas, oh céus, agora são cerca de 83% de votos em branco na capital!
O que ocorre, então? Já que a população não se comporta como as autoridades desejam, é decretado o estado de sítio. À lucidez do povo, que demonstra sua insatisfação política, contrapõe-se a eterna cegueira dos detentores do poder: a de não querer enxergar as coisas mais além de como elas se apresentam. E as justificativas para esse estado de sítio e de situações insólitas, como certos atos cometidos nas ditaduras e nalguns países de democracia de fachada, são quase sempre risíveis se não fossem condenáveis. São atitudes de um governo eleito democraticamente, como diz um personagem a certa altura, “mas capazes de encher de orgulho qualquer ditador.” E como!
Os mandatários do país de Saramago esperam que, castigando a população, os eleitores se arrependam de seu comportamento eleitoral e a situação na capital volte à normalidade em breve. Mas os poderosos não se entendem às mil maravilhas: seus pontos de vista são divergentes, ocorrem discussões e disputas no próprio seio do governo. Especialmente quando se trata de achar os culpados pela atitude dos eleitores, “os incentivadores, os responsáveis, os criminosos pelos votos em branco”. Mesmo que esses culpados não existam ou não existam provas robustas contra supostos culpados – um deles justamente uma personagem de Cegueira, que retorna aqui, “a mulher do médico” (no cinema, Julianne Moore). Da mesma forma que no outro livro, em Lucidez nenhum personagem tem nome próprio, geralmente é designado pelo que faz: comissário, primeiro-ministro, inspetor, delegado do partido da esquerda (ou da direita ou do meio), prostituta, etc.
Muitas das situações apresentadas no livro encontram paralelo nas que ocorrem com frequência em certas republiquetas ditas democráticas, cujos governantes, para encobrir sua incapacidade, incompetência e especialmente sua falta de probidade ao lidar com a coisa pública, costumam jogar a culpa de seus erros, fracassos e escândalos na imprensa, nas oposições, no imperialismo americano, no sionismo internacional, etc. Também há trechos do livro em que os diálogos entre os personagens do governo e entre os da polícia parecem ou são tão burocratizados que é quase impossível que não nos sintamos, por instantes, mentalmente transportados para uma repartição de serviço público daqui ou alhures. Onde os cidadãos pagadores de impostos são quase sempre vistos com desconfiança enquanto políticos, governantes e simpatizantes são tratados com imerecida deferência.
Apesar de esquerdista (membro histórico do PCP), nos últimos tempos Saramago vinha dizendo que a esquerda “havia deixado de ser esquerda" e se tornado "estúpida", que os governos cada vez mais se transformaram "em comissários do poder econômico". As esquerdas, como se sabe, apreciam o gigantismo estatal, o estado inchado e gordo, abrigando a companheirada toda, muito bem paga, trabalhando pouco, quase nada produzindo de útil ou de inovador para o desenvolvimento de seus países. Pior, esquerdistas como os nossos tendem ainda à demagogia, ao populismo e assistencialismo. E volta e meia tentam sufocar a liberdade de imprensa. Tudo muito parecido com o que acontece em Lucidez. Ou vice-versa.
A primeira parte do livro é uma grande sátira aos políticos e às eleições; na segunda metade, que trata da investigação policial em busca dos culpados pela maciça votação em branco, é que se verifica o ataque de lucidez que acomete um dos investigadores e que justifica plenamente o título da obra. Obra esta que, infelizmente, não entusiasma tanto assim o leitor (e lhe dá até uma certa canseira), como os citados Caim, As Intermitências da Morte, Ensaio Sobre a Cegueira e outros livros de mestre.
Lido entre 23/05 e 05/06/2013.