Bia 07/03/2019
Impressões sobre O Arquipélago e O tempo e o vento
Este texto não é uma resenha, é mais a confissão de uma leitora encantada que não tinha com quem conversar sobre o final de uma obra que a cativou completamente: O tempo e o vento, de Erico Verissimo. É uma confissão sobre o momento em que o leitor fecha o livro e exclama mais uma vez: como é maravilhosa a Literatura!
Fecho o livro com a sensação terna e, mais do que tudo, literária que vem com chegar ao fim de uma história, a qual ainda se seguiram cronologia da obra, breves biografias do autor, uma lista de suas obras, e ainda a última e derradeira página com todas as edições e reimpressões do livro e as informações sobre a diagramação, tipologia, impressão e sobre o papel certificado e produzido a partir de fontes responsáveis. Passei os olhos ainda marejados por todos essas formalidades pós-FIM até fechar, enfim, o calhamaço de 968 páginas sem orelhas, e olhar para sua capa já com saudades de sua presença. O tempo e o vento. Então é assim, no arquipélago, que termina uma das maiores obras da literatura brasileira.
Fico alguns momentos abraçada a ele, sentindo-me ainda envolta pela atmosfera da história. É cruel para o leitor o fim de um livro, principalmente quando é o fim de uma obra que cobre duzentos anos da história de uma família, de uma cidade fictícia, mas inspiradas e baseadas em famílias e cidades reais no espaço e no tempo da História com H maiúsculo do Rio Grande do Sul, do Brasil e da vida de Erico Verissimo. Depois de tudo, de ver os personagens nascerem, viverem, amarem, morrerem, de repente um ponto final corta toda a correspondência de gerações do leitor com essas “pessoas” em quem ele investiu horas, dias, semanas de seu tempo para conhecer, cujas histórias o próprio autor levou 27 anos para desenvolver. E o que lhe sobra é um futuro reencontro que não dirá nada do futuro e nada de novo sobre elas, uma releitura que talvez nem venha a ocorrer. E daqueles seres que ele sente que pegou no colo quando bebês sobra a memória que será comumente traduzida como uma boa leitura.
A Literatura é maravilhosa. Esse é um dos momentos que sou relembrada disso e agradeço por tudo o que me leva a essa conclusão, ter sido alfabetizada, ter sido apresentada aos livros e por ter crescido em meio deles, pela inteligência humana que levou à existência da arte das palavras e a sua acessibilidade.
Sou tão parecida com Floriano e Sílvia. Ela é espelho dele, que por sua vez é espelho do próprio autor. E eu, leitora de sua obra mais de cinquenta anos após ter sido publicada, vejo também meu reflexo neles todos. Sim, que coisa incrível é a Literatura. No diálogo entre Floriano e Rodrigo o próprio autor revela que há o encontro entre criador e criatura. E eu, como leitora sou ainda uma terceira pessoa-personagem em tudo isso. Afinal, a matéria-prima do escritor é o ser humano, esteja ele dentro ou fora da obra. Essas ilhas, como pensa Floriano, que precisam ser unidas num arquipélago.
Há muitas camadas de metalinguagem.
Amo a Literatura. Amo ter entre as minhas lembranças as lembranças de outras pessoas, narradores, personagens, autores, que são reais por terem sido incorporadas à minha experiência a despeito de sua não-existência. O tempo e o vento estão agora gravados em mim com as vozes de Ana Terra, Luzia, Bibiana, Licurgo, Maria Valéria, Rodrigo Cambará, Floriano, Sílvia, Neco Rosa, Liroca, Pepe García, Toríbio, e por aí vai... E o vento sopra nas janelas do Sobrado. Noite de vento, noite dos mortos. Ainda bem que sou leitora, e para mim ainda estão todos vivos e bem guardados dentro das páginas desses três volumes. Embora muitas vezes eu tenha me emocionado ao “presenciar” as mortes de tantos desses.
Hoje ainda é dia de deixar o livro por perto só para me desacostumar de sua presença silenciosa, de caçar os trechos cujas páginas anotei, de me habituar à ideia de que terminou, de lembrar e fixar esse terceiro volume junto com os outros dois em minha mente de forma que logo, logo não conseguirei diferenciar o fim de um e começo do outro. De escrever essas impressões de leitor que não tem com que conversar sobre a obra pela qual se apaixonou. Não conheço ninguém que já tenha lido a obra toda. Como eu queria! E alguém que ainda tivesse frescos na memória como tenho agora o nome dos personagens, seu trejeitos, enfim, sua quase que tridimensionalidade, realidade, fidelidade aos seres humanos reais... Alguém para dizer: sou como Floriano e Sílvia, como é maravilhosa a Literatura, é isso que quero fazer. Queria ter uma paixão assim pelas coisas da vida real, mas fui conquistada pelos livros, e pelos de ficção, tragada pelas palavras negras estampadas em fundo branco. E de certa forma é assim que amo mais os seres humanos, conhecido mais espécies deles por meio dos autores de diferentes partes e épocas do mundo do que eu poderia fazer ao longo de toda a minha vida. E o que estou escrevendo está mais no tom da narrativa do que no tom de quem sou plenamente, é um exagero, mas afinal, é parte de mim. De certa forma essa obra trouxe a Erico maior conhecimento de si e de seu povo, bem como traz a Floriano seu verdadeiro nascimento e reconciliação com sua terra, e extrapola criador e criação – mais uma vez -, fazendo-me entender como leitor, o que certamente ocorre com outros, mais sobre mim mesma, meu povo e o ser humano e a vida.
"- Estou chegando à conclusão de que um dos principais objetivos do romancista é o de criar, na medida de suas possibilidades, meios de comunicação entre as ilhas de seu arquipélago... construir pontes... inventar uma linguagem, tudo isto sem esquecer que é um artista, e não um propagandista político, um profeta religioso ou um mero amanuense..."
- Floriano em O arquipélago, pág. 218.
site: http://www.minhasleituras.com/2019/03/o-momento-em-que-o-leitor-fecha-o-livro.html