Moça Antiga (Larissa) 26/06/2018
Jornalismo "Dancin Days"
Nelson Motta, na função de jornalista, segue sendo um excelente letrista — aliás, vitorioso desde a “sacralidade” da MPB até a “heresia” do mainstream —; nisso, sim, lhe consagro com os mais entusiasmados elogios.
A bem da verdade, confesso, não sei como alguém assim insípido em termos de prosa pode, ao escrever versos musicais, ser capaz de distanciar-se tanto de si mesmo ao dizer coisas com tempero estilístico e universalmente comoventes (até mesmo na mais trivial letra Pop). Eu sei que não são vivências mutuamente excludentes (ser opaco ao opinar na vida e brilhante ao se personificar na arte), mas eu costumo pensar que são sim — e, por isso, acho difícil imaginar que o Motta de deslumbres como 'Cantador', 'De Onde Vens' ou 'Certas Coisas' é o mesmo sujeito que escreve pro Globo ou que apresenta aquele quadro, igualmente chapa-branca, no JG. Enfim, me dou eu mesma um xeque-mate: "longa é arte/ breve é a vida'!
Agora, vamos ao indefensável... Como narrador de fatos, ele é um marujo à deriva no mar da verdade — seu olhar, 'mistificador' (como diria Quércia rs), sempre superará a "monotonia" da realidade. Naturalmente, tal característica não se configuraria num defeito caso se tratasse de um escritor de ficção — às favas com os escrúpulos da verossimilhança — ; mas num jornalista, principalmente um com ares de "remanescente de tempos áureos", isso é um câncer que compromete todo o organismo documental.
Não digo que 100 % desta obra seja mentira — e é claro que nem se sustentaria legalmente, caso assim o fosse! Mas, isto sim, eu afirmo: tal e qual a história do 'Pedro e do Lobo', tanto Motta trai a realidade em diversos fatos invocados que, quando é sincero na reconstituição, naturalmente já nos pomos desconfiados da fonte. É que o 'parça' de Tim Maia traz consigo a qualidade e o defeito de ter sido testemunha ocular de alguns dos momentos culturalmente determinantes, privando da intimidade de alguns dos nomes mais estelares que compõem o Olimpo de nossa MPB — é aí que mora o perigo, pois ele confia ou superestima a própria memória afetiva (cá pra nós, a mais insegura e fantasiosa das fontes). Informações errôneas se espalham por sua narrativa — a ponto de eu seguir a leitura, mais pra sublinhá-las do que para 'minerar' dados jornalísticos.
Checar fontes? Pra quê? Amigo e parceiro do Dori Caymmi, isso há literais décadas — aliás, foi o primeiro letrista a compor com o filho do meio do clã Caymmi (desde antes de 1972; ano do primeiro disco de DorY, quando ele ainda grafava seu nome com Y)! E, mesmo assim, Nelson (que não é o Rubens, por pouco rs) comete a proeza de dizer (aí no livro) que Dori “é baiano”; sendo que, fato sabido até pelos bueiros do Andaraí, apenas seu pai é baiano — ele é carioca ele/ é carioca rs. Ok! Eis um desleixo bobo, coisa pra uma errata, mas que ilustra bem o nível de "pesquisa" de Motta ao ‘empilhar’ 'causos' sobre a nossa MPB.
Aquela espécie de ‘eminência parda’ em volta dos gênios, o autor dos versos de 'Dancin Days' não é só um típico carioca "suingue/ sangue-bom", ele se tornou viciosamente aquele sujeito neutro (inclusive como crítico musical) — incapaz de apontar falhas, tem existido pra “encher a bola” dos seus contemporâneos; rasgando-se em elogios ‘batidos’ ou repetindo constatações melhor dissecadas por críticos de fato.
Em se tratando estritamente da face jornalística... Penso que segue sendo o deslumbrado garoto classe média alta: que teve a sorte de estar no lugar certo, na hora certa, cercado das pessoas certas — claro, eu não diminuo seu merecimento ou magnetismo pessoal ao ter permanecido no meio deles. E outra: até acho bonito, me identifico com sua real emoção ao rememorar os seus verdes anos dourados… Pero o que ultrapassa meu critério pessoal, é que suas 'noites tropicais' e suas 'verdades' (tropicadas rs) não chegam a sequer roçar os fatos tal como ele são.
O que há de válido, nesse relato auto consagrador, é justamente quando NM se concentra em falar das suas próprias intimidades afetivas. Como seu caso amoroso com Elis, "talarico", sob as "barbas" do seu então melhor amigo Ronaldo Bôscoli (que era ainda casado e sempre às turras com a Pimentinha. Reza a lenda que, numa das mais célebres brigas do casal, a gauchinha teria arremessado pela janela, para horror de Ronaldo, sua estimada coleção de vinis de Sinatra — Aldir esqueceu de usar esse episódio na sua 'Incompatibilidade de Gênios': "meus vinis do 'The Voice' ela botou pra voar" rs). Ou ainda e é outro épico 'affair': o posterior relacionamento com a Marília Pêra (segundo Nelson, essa sequência de paixões folhetinescas teria sido o pivô de um inicial atrito entre Elis e Pêra que, depois, tornaram-se 'best friends').
Quando se concentra nos ‘detalhes tão pequenos’ de sua intimidade com grandes nomes, aí sim, brota algo próximo de autenticidade além da miragem jornalística. Embora, até nesse ponto, 'Noites Tropicais' ainda privilegie o espetáculo; digo isso porque, ao focar nessas intimidades, Motta só o faz com riqueza de detalhes nos nomes que foram abraçados no seio popularesco (nos demais, se limita a economizar episódios pitorescos).
Eu como já tenho experiência própria com o jornalismo, tentando representar com fidedignidade a classe, consigo separar o joio do trigo nesse deserto de verdades plantadas. Mas se você, leitor, procura uma obra para se embasar com dados biográficos sobre MPB... Acho melhor buscar uma fonte mais segura (recomendo nomes como Ruy Castro ou Sérgio Cabral; esse segundo foi um mestre na arte de encadear histórias que viveu cara a cara, mas mantendo referências seguras). Se seu objetivo é apenas se distrair com um livro inofensivo, sem compromisso com fontes fidedignas, então leia essas meias verdades douradas — se mentiras sinceras te interessam, vá na fé!
Ponto FORTE: Nelson é um sujeito constituído da substância de suas memórias. Se o "dize-me com que andas e eu te direi quem és" lhe for aplicado, ele é alguém incrível.
Ponto FRACO: ele põe muita fé no seu mosaico da realidade. Mais que ser abençoado com a estadia no lugar certo, um jornalista precisa ser um fiel restaurador dos fatos; um cético, principalmente, de sua própria memória.
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