Fabi_Colaco 14/02/2024
Voz
?O SILÊNCIO PODE ENSURDECER!?
"Vox", é um verdadeiro passeio pelos limites da liberdade, igualdade e sanidade em um mundo distópico. Imagine poder falar apenas 100 palavras por dia!
Assim como em "The Handmaid?s Tale" (O Conto de Aia), nos Estados Unidos, um governo fundamentalista religioso decide restringir a linguagem das mulheres, retirando-as do mercado de trabalho e de outras áreas sociais, acreditando ser a solução para os problemas do país. Mas aqui está o diferencial: "Vox" não foca apenas nos bastidores do governo, ele mergulha na vida dos cidadãos comuns, revelando os problemas que enfrentam em suas famílias, trabalhos e vizinhança.
A dra. Jean McClellan, uma mãe, esposa e ex-cientista especialista em neurolinguística, agora vive em um mundo onde não pode trabalhar, ler, escrever, dirigir ou mesmo falar livremente com seus filhos e esposo. Mulheres, incluindo crianças, são controladas por controladores de palavras em forma de pulseiras, que aplicam choques quando o limite de 100 palavras por dia é excedido e esses vão aumentando de intensidade até que a pessoa pare de falar ou desmaie.
Uma mulher fala em média 20 mil palavras ao dia. Você consegue pensar em como seria sua vida se falasse apenas 100? Jean teve que pensar em cada palavra dita, cada vontade suprimida, cada xingamento que ela gostaria de fazer. A maior preocupação dela é com sua filha mais nova e com o seu desenvolvimento. Sendo a cientista que é, ela sabe que todo o desenvolvimento de sua garotinha estará comprometido se ela for impedida de falar.
Jean se recrimina por não ter percebido o que estava acontecendo a sua volta, sua amiga feminista e ativista Jackie sempre a avisava, mas Jean achava que era exagero e também não tinha tempo para essas coisas, já que precisava cuidar de sua carreira e família. Quando o novo governo começou a tirar as mulheres de seus empregos, a revogar seus passaportes, a impedi-las de ter contas em bancos, já era tarde para Jean protestar.
Seu marido, um médico e membro da elite do governo, não era uma má pessoa, porém ele não se comprometia exatamente com as causas que acreditava serem corretas e isso foi causando um sentimento de decepção em sua esposa especialmente pela falta de possibilidade de diálogo e também porque os homens passaram a ter que trabalhar dez, doze horas por dia, já que sem as mulheres na outra ponta das relações trabalhistas, os homens tinham que cumprir várias horas, tornando-os ausentes em suas famílias.
Mas tudo muda quando Jean é a única profissional que poderia ajudar o irmão ferido do presidente, ela recebe uma licença especial para poder falar e trabalhar. Em uma conversa com o marido, ele reclama em voz alta que preferia quando ela não podia falar. E aqui fica evidente que esse é o verdadeiro perigo da normalização da opressão, quando as pessoas começam a se acostumar com as situações absurdas impostas e se adaptam a elas, tudo vai se tornando normal, deixando de chocar ou causar repulsa, basta ver relatos de policiais nazistas quando lhes perguntaram por que seguiam com práticas tão cruéis mesmo não concordando com elas.
Outra preocupação de Jean é seu filho mais velho. A autora coloca cenas de um ano antes em vários momentos, antes da vida mudar drasticamente, onde aulas de teorias fundamentalistas cristãs começaram a aparecer nas escolas. O que parecia inócuo, inocente, começa a surgir aqui e ali sob a alegação de defesa de uma sociedade mais justa, um ano depois, seu filho mais velho é totalmente a favor do novo sistema e chega a tratar a mãe como uma empregada, dizendo que a função de cuidar da casa é da mulher e não de todos os moradores.
A narrativa é intensa e provoca reflexões sobre questões sociais contemporâneas, especialmente relacionadas à igualdade de gênero, à liberdade individual, o crescente poder econômico e político de países ditatórias que dão pouco ou nenhum espaço as mulheres e não incomum, restringem direitos que elas já haviam adquirido no passado.
Essa história também nos mostra que grandes mudanças governamentais começam de forma pequena, em grupos como igrejas, escolas e assim vão ganhando força. Foi inevitável não sentir calafrios lendo esse livro, porque é inevitável ir estabelecendo pontos entre a ficção e a realidade, pois todos os dias vemos nos noticiários o número crescente, em países democráticos, de apoiadores de narrativas de países ditatoriais.
Fiquei decepcionada com o final da história, poderia ter sido mais aprofundado, a autora passou muito rapidamente por algumas situações interessantes como as explicações científicas do projeto onde ela trabalhava e o final fica meio em aberto para alguns personagens. Ele tinha espaço para ser bem mais robusto do que foi, me passou a impressão que a autora cansou e quis acabar logo com a trama, uma história que poderia ter sido excelente, mas que, sem dúvida, deixa uma marca duradoura.
Mas não se engane, "Vox" é uma leitura emocionante, capaz de provocar calafrios ao traçar paralelos entre ficção e realidade, por destacar o poder ditatorial crescente e a resistência insuficiente diante da supressão de direitos.
Se você ainda não é um ávido leitor, corre o risco desse livro ser a porta de entrada para um mundo de emoções e reflexões, você pode se apaixonar pela leitura!
?A única coisa necessária para o triunfo do mal é que os homens bons não façam nada.?
?Minha culpa começou há duas décadas, na primeira vez em que não votei, nas vezes incontáveis em que disse a Jackie que estava ocupada demais para ir a uma de suas passeatas, fazer cartazes ou ligar para meus congressistas.?