Mariah 13/08/2021
"-- A primeira dá sentido à segunda, e a segunda dá materialidade à primeira."
[…trechos relevantes do livro: ]
“O acaso é feito à nossa semelhança.” Georges Bernanos
Dizer, portanto, o que é espiritualidade é uma tarefa complexa. {...} Um dos eventos mais marcantes do processo de constituição da ideia de espiritualidade que temos hoje é, justamente, sua “desinstitucionalização”, como tudo aliás, a partir da radicalização da modernização burguesa em que vivemos nos últimos séculos. É este processo que nos levará à ideia de espiritualidade como commodity (produto à venda), como veremos ao longo da nossa caminhada.
Vamos incorrer no pecado metodológico do anacronismo, ou seja, aplicar um conceito para épocas antes de ele existir de fato no repertório linguístico. {...} Devo esclarecer que o âmbito deste livro é, por um lado, o mundo judaico-cristão, e, por outro, o mundo da filosofia sem religião. Não que outras formas de espiritualidade não sejam importantes, mas vivemos de acordo com nossos limites, e meu limite geográfico é Jerusalém e Atenas. Aliás, essa máxima, “vivemos de acordo com nossos limites” , é bastante espiritual, como veremos em seguida. Portanto, outras “demandas culturais” não devem ser feitas a mim.
(…) O desencontro consigo mesma, vivido sob o avassalador signo da agonia no mundo, do desejo sexual sem repouso, da sedução de todos os homens a sua volta, em cada pequeno gesto, num fio de cabelo molhado, num vestido sujo de lama, numa galocha atolada na chuva, levando-a a causar a destruição das pessoas.
Segundo o antropólogo Clifford Geertz (1926-2006), uma religião (ou espiritualidade) tem duas grandes “camadas”: a teórica, que fala das narrativas e teorias de mundo, e a prática, que fala dos atos, hábitos e cotidiano das pessoas. A primeira dá sentido à segunda, e a segunda dá materialidade à primeira. Portanto, a busca pela ordem das coisas é a busca pelo argumento final e absoluto que definiria como eu devo viver meu cotidiano: como devo amar, como devo comer, como devo odiar (se devo odiar), como devo morrer, o que devo esperar.
(…) A cura da ilusão não é teórica mas prática, por isso Thoreau vai se isolar e “construir” com as próprias mãos a vida cotidiana. Como se a vida física carregasse em si uma redenção que o pensamento é incapaz de criar por si só.
[analise de construção do texto]
“Meditatio mortis era um termo continuamente usado pelos estoicos para se referir a sua filosofia.”
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O deserto torna inútil grande parte da parafernália social e material. O acúmulo de bens no deserto é absolutamente inútil. A própria constituição dele (pedras, montanhas, areia) nos remete à noção clássica de que tudo é vaidade ou nuvem de nadas, como diz o texto bíblico do Eclesiastes. Viver a verdade última é perceber que tudo passa como uma sombra, só Deus permanece. (…) Neste nível, a espiritualidade israelita diz que viver segundo os ancestrais é sábio porque eles nos legaram a vida e o mundo, e, por isso mesmo, atestaram sua sabedoria em garantir sua herança, que somos nós. Quem pode, com certeza, afirmar que nós legaremos algumas heranças ao futuro, quando nem filhos mais queremos ter? O segundo é o livro do Eclesiastes. Este tem na espiritualidade a função de nos ensinar que tudo é pó e vaidade afora Deus
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A Bíblia hebraica, comumente, usa a expressão “conhece uma mulher” como sinônimo de fazer sexo com ela. O sentido aqui é evidente: conhecer uma mulher é penetrar nela, sendo a “função desta” ser penetrada. Virgens são oferecidas aos deuses, mesmo as deusas. Devorá-las ou deflorá-las é, comumente, parte de um processo iniciático. Penetrar uma mulher é tocar o fundo de seu ser. E o prazer que ela sente em ser penetrada é aquele de sentir que ela vive nesse momento a razão e o sentido último de sua existência
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sobre seres divinos à semelhança de sua “natureza algorítmica”. Deus seria um grande algoritmo incognoscível aos poderes disponíveis à própria “natureza”