rxvenants 22/04/2021Afrodite não se arrepende, então deveríamos todos ouvi-la.GATILHOS DO LIVRO: Racismo, assédio, tentativa de abuso sexual, guerra, descrições detalhadas de machucados, assassinato e gore.
Já estou me martirizando no começo dessa resenha (que provavelmente vai ser gigantesca) por não cobrir todos os pontos e todos os sentimentos que tive ao ler esse livro.
Um dos meus novos favoritos da vida, Lovely War é uma mistura incrível entre Mitologia Grega, as crueldades da guerra e as fases do amor.
O livro começa com o julgamento de Afrodite por Hefesto e as acusações de ela ter envolvimento com Ares. Diferente da história "original", Julie Berry criou um arco de redenção para o relacionamento entre Afrodite e Hefesto (uma vez que eles têm suas ligações curadas e não acabam em separação, como nas histórias gregas).
E para justificar seus atos, Afrodite comenta como ela é a deusa do amor, mas está para sempre condenada a não ser amada verdadeiramente. E para embasar sua visão, ela decide contar a história de dois casais e seus amores verdadeiros, "alguns dos trabalhos que ela mais se orgulha", como ela mesma diz.
E assim nós conhecemos a história de James, um jovem prestes a ir para as linhas de frente da Primeira Guerra Mundial; Hazel, uma pianista que vira voluntária; Colette, uma jovem belga que perdeu a família e quase toda a sua cidade no início da guerra e Aubrey, um jovem pianista e parte da banda do Quinto Exército - composta por pessoas de cor e mandada para auxiliar os franceses e ingleses na guerra.
É difícil não querer fazer uma monografia sobre o livro, mas vou dividir meus pensamentos em três coisas: o conteúdo histórico, o enredo + personagens e a escrita de Berry.
De cara, dá pra perceber que Julie Berry fez a lição de casa em relação a história da Primeira Guerra Mundial.
São descrições incriveis de treinamento, das trincheiras e dos postos dos soldados. Não só os da linha de frente, com o James, mas os estadunidenses que esperavam por seu momento na guerra.
Foi muito importante ela também cobrir o papel dos jovens negros nisso tudo. Como ela mesmo ironiza pela visão de Ares no livro, eles não eram pessoas e não serviam para nada, além de entreter (com o novo Jazz que só os "blackies" sabiam tocar) e serem mandados pra morrer.
O governo americano não queria participar da guerra, mas mandavam os jovens pretos para ela mesmo assim.
Berry também não deixou de lado as traições do próprio país com essas pessoas, uma vez que quando chegaram na França, vários foram mortos por marinheiros brancos americanos dentro dos acampamentos.
Berry fala bastante sobre o racismo intercalado na guerra (não só a mundial, mas as que as pessoas de cor viviam na segregação dos EUA) e confronta até mesmo Hazel, a personagem principal, sobre isso. Aubrey chega a perguntar para ela se já tinha conhecido alguém de cor ou se tinha nascido num bairro de marfim.
Ela também fala sobre relações entre uma mulher branca e um homem preto na época e como principalmente os homens (apesar de algumas das mulheres também) encaravam como uma afronta essas relações, mas usavam mulheres pretas como diversão e corpos para prazer.
As relações étnicas são pinceladas por todo o livro e na forma que os países enxergam Aubrey e seus companheiros de banda.
Toda a raiva que Aubrey não pode expressar, mas tem todo o direito de sentir. Todo o companheirismo que sente pelas pessoas que já sentiram o mesmo que ele.
Em outros aspectos da guerra, Berry fala sobre escolhas que os soldados não tinham, enquanto seus comandantes ficavam de fora dos combates reais. Ela fala sobre os traumas que eles sofrem na guerra, fala sobre suas condições precárias e de constante ansiedade.
Fala sobre as milhões de famílias destroçadas e por meio de James, dos estresses pós-traumáticos que esses soldados agora precisarão aprender a lidar.
Fala também sobre a dificuldade de comunicação entre as famílias e os soldados e como esses problemas muitas vezes causavam ansiedade nos que esperavam em casa. O maior problema entre os casais foi justamente causado pela dificuldade de entrega de cartas, pela troca de correspondências e outras pessoas simplesmente não entregarem esses bilhetes.
Ela tambem fala um pouco, mas de maneira bem limitada, sobre como as mulheres eram tratadas nessa época de guerra.
O livro é recheado de ironias e críticas à Ares e tudo que ele corrompe, principalmente pela visão de outros personagens da mitologia grega. Apollo chega a diretamente dizer a ele que tudo de errado na história dos casais é culpa de Ares.
Em relação à história mundial, esse livro é um prato cheio.
Além disso, os personagens desse livro são incríveis. Não só os humanos, mas também os deuses, que são os melhores alívios cômicos depois de tanta desgraça.
Eu gostei muito dos dois casais principais e apesar de entender o foco maior no James e na Hazel, adoraria que Aubrey aparecesse um pouco mais e que suas questões psicológicas fossem mais trabalhadas. Eu leria um novo livro, com a mesma história, mas a perspectiva majoritariamente dele.
Não houve um momento em que eu ficasse com saco cheio das interações entre os quatro ou os olimpianos ou que eu achasse algo forçado.
São personagens simpáticos e que eu torci o tempo todo para que fossem felizes. Não tem muito mais o que dizer sobre eles sem falar da escrita de Julie.
E então chegamos no ponto principal. 90% do crédito desse livro vai além do retrato histórico: a escrita de Julie Berry é fenomenal.
Primeiro que o livro é dividido entre atos e intervalos, como numa apresentação de música e orchestra, algo que é presente em todo o livro.
A nossa leitura também é uma mistura entre terceira e primeira pessoa: terceira, pois são os deuses que contam a história dos humanos e primeira, pois vemos os pensamentos deles diretamente enquanto isso.
A escrita é fluída e os capítulos curtos te deixam animado e num ritmo ótimo.
As observações que ela faz, por meio dos deuses, são de tirar o fôlego. Marquei diversas passagens no livro, mas as que mais ficaram comigo foram aquelas em que ela comentava sobre a guerra de forma sutil, como algo que está sempre a espreita e que os personagens mesmo nunca percebem.
Em uma passagem, Afrodite comenta sobre Ares estar como homem na fileira do trem atrás de James e Hazel. No próximo capítulo, ele é mandado para a guerra e perde a chance de beijar Hazel pela primeira vez naquele final de semana.
Sempre achamos que temos mais tempo do que realmente temos e nunca temos um estalo sobre a fragilidade dos nossos momentos na terra.
Em outra passagem, ela comenta como James ficou feliz e orgulhoso de acertar todos os tiros no treinamento e como ele sabia que isso era algo que seria usado em outras pessoas. A passagem trás um sentimento agridoce indescritível.
Em outra, depois que James já voltou da guerra depois de perder seu amigo Frank Mason, em uma conversa com a viúva dele, Hazel ora para que o filho maior de Mason não precise conhecer os horrores que James conheceu.
Afrodite comenta que ele conheceria e passaria pelo mesmo que o pai, pouco menos de 30 anos depois, na batalha contra os Nazis.
É muito difícil ler essas coisas e não pensar muito sobre as escolhas que nos levaram até aqui e como Berry mesmo diz no final do livro, o que poderia ter sido se não houvesse o assassinato do duque. Seria a mesma coisa? Teríamos achado outro motivo para guerra?
Bom, o livro inteiro te trás questionamentos sobre morte e vida e como vamos aproveitar o momento. A história fala sim sobre conflitos e guerra, mas é principalmente sobre amor e viver enquanto podemos.
Foi lindo demais a forma que ela conseguiu descrever a pureza do amor e todas as suas fases.
James e Hazel eram extremamente bobos, mas eu fiquei com um sorriso no rosto por eles durante os primeiros capítulos.
Julie conseguiu descrever perfeiramente todoa os momentos do amor: o primeiro beijo na bochecha, as noites pensando em outra pessoa, as dúvidas incessantes nas primeiras conversas, o uso do primeiro nome (na época algo bem mais pessoal), o primeiro beijo de verdade... esse amor arrebatador daqueles que nasceram para ficarem juntos.
Ainda mais com os empurrões e a ajuda da deusa do amor.
Foi um relacionamento rápido, mas não insta-love.
Esse é o conceito de tudo, o ofício de Afrodite: ver potencial nas pessoas e fazê-las atuarem nesse sentimento.
Em questão dessa escrita com desenvolvimento de personagens, a autora conseguiu com maestria desenvolvê-los pela perspectiva dos olimpianos, além de não perder o foco e nos lembrar sempre do porquê estarmos ouvindo essa história de Afrodite.
Além de Afrodite, vamos acompanhar também as visões de Ares, Apollo e Hades.
Eu achei perfeito como ela trouxe sentimentos atrelados a todos eles.
Toda vez que era a Afrodite, eu sabia que ficaria com o coração quentinho, com Ares, ansiosa pelo futuro dos personagens, com Apollo, experimentaria a musicalidade, arte e vivacidade e com Hades, a melancolia da morte.
A coisa de sentir algo só pelo nome do personagem aparecer é muito gostosa na leitura. Além disso, todas as personalidades distintas, a conversa entre eles não só nos Intervalos, mas enquanto narravam os fatos... tudo foi muito incrível.
O capítulo final antes dos agradecimentos, com as fontes e experiências da autora e os fatos reais que ela utilizou na obra... impecável.
E pra não me estender mais: Lovely War é composto de camadas de detalhes e ligações entre os eventos dos livros. Existem diversos paralelos e é uma história para se absorver e pensar durante um bom tempo.
Não vou conseguir tirar a escrita da cabeça tão cedo e com certeza vou reler diversas partes.
E por fim, se você sabe inglês e tem a chance de ler esse livro, leia. É extremamente marcante e eu espero que sua leitura seja uma experiência tão incrível e de reflexão quanto a minha.