willian.coelho. 16/06/2021
"O amor é um cão dos diabos"
Mario Vargas Llosa é um escritor peruano galardoado com o Nobel de 2010 (há somente mais três premiados na América Latina), quatro anos após o lançamento da sua obra “Travessuras da menina má”. Llosa também é uma figura bastante ativa politicamente (adota uma linha liberal bem progressista): perdeu as eleições presidenciais de 1990 para Alberto Fujimori, que implementou um governo bastante autoritário e violento. É um escritor bastante culto: viveu em diversos países e se aventurou em ensaios, críticas e peças, além dos romances.
A trama deste livro acompanha a vida do narrador Ricardo Somocurcio, peruano que emigra para a Europa extasiado pelo ambiente cultural do continente da segunda metade do século XX. Contudo, é importante destacar que o enredo enfoca a saga romântica de Ricardito - que é cegamente apaixonado por uma enigmática conterrânea (uma mulher que aparece com muitos nomes). Uma história de amor doentio e impossível: obcecado pela mulher, o protagonista a encontra em variados cenários históricos em diferentes países e situações, sempre sendo repentinamente abandonado pela mesma, no auge de sua paixão. O leitor é convidado a experienciar suas emoções e transformações psicológicas, na medida em que, injetado nos pensamentos de Ricardo em primeira pessoa, tem acesso somente a sua vivência através da sua personalidade, todos os outros elementos são imprevisíveis.
A narrativa é, de modo geral, bastante estável; há alguns trechos, todavia, que se destacam pela originalidade, como o eixo do japonês Fukuda (indivíduo demasiadamente atípico que renova a história). É válido salientar, no entanto, que, em alguns momentos, o texto amorna: há uma sensação de repetitividade, poderia ser mais enxuto. Existem seções não ficcionais e bem relevantes sobre o contexto sociopolítico e cultural do século XX, principalmente sobre a revolução cubana (1959) e seus desdobramentos na cena latinoamericana. O protagonista é suficientemente sólido, e personagens secundárias têm construção decente, como o sujeito bissexual que vive na pele a desconhecida epidemia viral que surgiu na década de 1980, o HIV.
Um dos pontos fortes - e que, de certo modo, até dá um teor de clássico à obra - é o estudo de personalidade que pode ser vislumbrado no feitio de Ricardito e de seu par romântico. Ele, de base pequeno-burguesa conservadora, concentra seus esforços em viver uma vida pacata, focada nas produções artísticas e na consumação dos seus impulsos sentimentalistas; ela, oriunda de uma família miserável, empenha-se em se tornar rica e saborear aventuras ousadas, por isso, age manipulando homens. Por mais que, em certos segmentos, o caráter extremamente piegas do protagonista com suas alucinações amorosas chegue a revoltar o leitor, uma observação mais apurada e metódica revela traços ocultos na sua psique, tal e qual melancolia e uma apatia racionalizada.
A escrita é simples, porém carrega alguns elementos mais eruditos indubitavelmente bem-vindos, como vocábulos em língua estrangeira. Isso faz todo o sentido, uma vez que realça a característica multilinguística definida pela presença de inúmeras culturas e da ocupação da personagem principal (intérprete e tradutor). Também não é um texto bastante poético: esse componente não está muito ligado à estética da arquitetura morfossintática, mas dos acontecimentos per se, do que é veiculado nas entrelinhas. A ausência de termos deveras rebuscados gera um estilo fluido, fácil, acessível, o que torna o livro uma excelente alternativa a essa literatura “boçalizada” e unicamente comercial que inunda o espaço literário, especialmente sob a forma de enredos supérfluos que apelam a um público feminino menos intelectualizado.