Virginia 13/09/2023
Uma fantasia épica e muito atual
A cidade de bronze é o primeiro livro de uma nova trilogia de fantasia inspirada pelos mitos do mundo pré-islâmico e árabe, uma tendência que tem ganho cada vez mais espaço no mercado editorial.
O livro transporta-nos para o Cairo do séc. XVIII, mesmo em plenas invasões napoleónicas. Conhecemos Nahri, a nossa protagonista, uma vigarista com poderes peculiares: ela pode sentir a saúde das pessoas só de olhar para elas. Obviamente, que isso lhe dá muito jeito na hora de vender poções e remédios. Um belo dia, durante um dos seus golpes, Nahri convoca acidentalmente uma força antiga e esquecida: um djinn. Perdão, um daeva. A partir daí, Nahri torna-se o alvo de seres mágicos. Sem muitas opções, Nahir une forças com o daeva que ela invocou e parte para Daevabad, o último refúgio mágico.
Mas Nahri não é a única protagonista deste livro. Alternando com os capítulos de Nahri, está Alizayd al Qathani, o segundo príncipe de Daevabad, a cidade das muralhas de bronze. É pelos olhos de Alizayd que somos apresentados a esta cidade mística muito antes de Nahri e o seu companheiro daeva chegarem lá. Eu diria que foi uma jogada inteligente por parte da autora, pois dessa forma a história nunca perde o seu ritmo.
À primeira vista, Daevabad parece ser uma cidade deslumbrante e mística, mas as suas belas muralhas escondem animosidade e tensão crescentes. A cidade é um barril de pólvora e basta apenas uma pequena faísca para explodir.
“Nossa fé é uma parte importante de nossa cultura”
Com A cidade de bronze, Chakraborty escreve uma história sobre religião, fé, intolerância, tirania e o ciclo de ódio gerado pelas inúmeras guerras. O mundo que a autora constrói tem tanto de belo como desolador. É um universo rico em detalhes, o qual vamos descobrindo a par e passo, juntamente com os nossos protagonistas. Não vou mentir, a princípio senti-me um pouco perdida com os vários termos que são apresentados no decorrer da narrativa, contudo o glossário que se encontra no final do livro colmatou em muito qualquer confusão que eu estava a sentir.
Como devem saber, para mim as personagens são a alma de qualquer história. Pode ser uma história cheia de reviravoltas e conceitos interessantes, mas se o autor não criar personagens minimamente interessantes e não as souber desenvolver, então tudo está perdido. Felizmente, não é esse o caso com este livro. Aqui todas as personagens são importantes e têm o seu papel a cumprir, mesmo as secundárias; e todas elas roubam a cena de uma forma ou de outra. Obviamente, temos que começar por Nahri e Ali.
“A grandeza leva tempo, Banu Nahida. Em geral, os mais poderosos têm os princípios mais humildes”
Dos dois protagonistas, gostei mais dos capítulos narrados por Nahri. Ela é simplesmente fantástica. Nahri é esperta, teimosa, com um instinto de sobrevivência muito claro. Achei interessante e refrescante a forma como a autora abordou a jornada dela pelo mundo mágico. Nahri caí de paraquedas neste mundo mágico, logo ela não sabe muito bem em quem confiar - para além de que, quando confirmadas as suas origens, Nahri sente um estranhamento e um desfazamento nas expectativas que são criadas sobre ela. Afinal, ela cresceu no mundo humano, portanto não sente qualquer afinidade emocional com o mundo que lhe é apresentado. No meu entender, a autora conseguiu captar muito bem esse detalhe na construção da personagem. De certa forma, Nahri lembra-me Alina Starkov da Trilogia Grisha. Ambas são atiradas para um mundo que não entendem completamente e, de alguma forma, têm de aprender a navegá-lo.
“Não vai conseguir continuar assim, Alizayd. Continuar no caminho entre a lealdade à sua família e a lealdade ao que sabe ser o certo. Algum dia vai precisar fazer uma escolha”
Descrever Alizayd al Qhatani (ou Ali para os amigos) como uma personagem complicada é ser um pouco redundante. A principal razão pela qual os seus capítulos não me cativaram tanto quantos os de Nahri, apesar de serem extremamente interessantes, é porque eu sinto que, no esquema geral da narrativa, a personagem estava um bocado ofuscada. Vou tentar explicar-me melhor. Ali é o segundo príncipe Qhatani, o seu pai é o rei que governa Daevabad e o restante do mundo mágico com uma mão de ferro. Ali é uma personagem que se encontra dividida entre a lealdade ao seu rei e a lealdade aos seus princípios. É uma batalha que vai tendo avanços e recuos. Não que eu não tenha gostado da personagem e dos seus dilemas, mas pareceu-me que Ali era utilizado mais no sentido de mostrar a nós leitores as intrigas políticas ocultas.
“Está tudo bem, Dara, de verdade. O que quer que tenha acontecido no passado é apenas isso: o passado”
Ainda que todas as personagens secundárias sejam muito bem construídas e tenham o seu papel na narrativa, não posso não deixar de mencionar Dara. De todas as personagens secundárias, é ele que ocupa um maior espaço na narrativa. Dara é o daeva que Nahri acidentalmente invocou e que a protege ao longo da narrativa. A relação entre os dois é conturbada, existindo uma ideia de romance, movido um pouco pelo deslumbramento. Todavia, esse "romance" nunca chega a concretizar-se de facto, uma vez que Dara é uma personagem imprevisível. A personagem possui um passado no mínimo controverso e quase que parece ser consumido por ele. Em Dara, Chakraborty traz-nos a visão da guerra e do preço da lealdade cega.
Talvez o mais interessante em A cidade de bronze seja essa moralidade dúbia. Todas as personagens escondem segredos, todos guardam ressentimentos e ódio. Ghassan pode ser o tirano óbvio, o antagonista mais visível, mas ninguém - absolutamente ninguém - está isento de falhas ou de críticas.
Em suma, A cidade de bronze é uma história cativante, que nos apresenta a um mundo deslumbrante, mas que esconde demasiados segredos que o ameaçam destruir.
P.S: vou ter que fazer uma observação um bocado chata acerca da tradução, contudo há que ser rigoroso de forma a entregar produtos com qualidade. Palavras como «Tiamat» e «zigurate» - conceitos sumérios - são, na realidade, femininas e não masculinas.