spoiler visualizarRaul113 06/07/2021
Emocionante e Aterrador
Por: Raul G. M. Silva - Especialista em Língua Portuguesa e suas Literaturas/Professor de Língua Portuguesa e Literatura.
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De todas as coisas em que eu sou bom, que eu tenho certeza de ser muito bom, é em escrever. Digo isso não para ser presunçoso, precisei e ainda preciso estudar muito e sempre é possível melhorar. O que realmente quero dizer com isso é que nunca senti ou tive problemas para me expressar através da escrita.
Na oratória eu sempre me enrolo, hoje em dia menos, a prática ajudou muito, principalmente na sala de aula e no canal do YouTube, porém não sou bom em me expressar falando, pelo menos não para os desconhecidos ou grandes grupos. Enfim, eu e a escrita sempre fomos bons amigos e sempre encontrei as palavras certas para dizer o que quero. Porém, não hoje, não nesse texto, nem com esse tema.
Ler Os Fornos de Hitler, de Olga Lengyel, foi um dos trabalhos mais difíceis que já tive que fazer. Mas escrever sobre ele é algo quase impossível. Escrevo resenhas de livros há anos e nunca me deparei com uma situação como essa. O relato de Olga Lengyel sobre sua vida no campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau é terrivelmente doloroso de se ler, mas extremamente necessário a leitura.
A forma como Olga foi levada para lá, é sem dúvida alguma uma das coisas mais chocantes em seu relato e quando pensamos que ela não foi a única que foi levada daquela forma é ainda mais aterrador. O que acontece a seguir é talvez ainda pior e a culpa que ela sente por causa disso está estampada em cada página de seu relato:
?Não sou capaz de me absolver da acusação de que fui, em parte, responsável pela morte dos meus pais e dos meus dois filhinhos.? (página, 11).
Sua dor é imensa, o sentimento de culpa, a tristeza, o desespero, são contagiantes ao leitor. É impossível não se conectar a essa mulher e ao que aconteceu com ela e sua família e a tantas outras mulheres e suas famílias graças aos caprichos de pessoas que se julgavam superiores.
Durante a leitura passamos por todas as etapas desse desespero, desde a desastrosa e torturante viagem:
?Noventa e seis pessoas se amontoavam em nosso vagão, incluindo várias crianças espremidas entre malas ? a mísera e parca bagagem que só continha o que fosse mais precioso ou útil. Noventa e seis homens mulheres e crianças, num espaço que acomodaria apenas oito cavalos. E isso não era o pior.? (página, 16).
Até a trágica vida no campo de extermínio de Bikernau, a espera de a qualquer hora ser mandada para a câmara de gás e aos crematórios, para abrir vagas que seriam ocupadas por outra tantas e incontáveis vítimas do regime Nazista:
?Hoje, quando penso em nossa chegada ao campo, relembro que os vagões de trem pareciam caixões. Aquele era, de fato, um trem fúnebre. Os agentes da SS e da Gestapo eram nossos agentes funerários, os oficiais que mais tarde avaliaram nossos ?tesouros?, nossos gananciosos e
impacientes herdeiros.? (página, 23).
Cada trecho do livro é marcado por lembranças sangrentas de quem viveu um dos piores horrores da história causados por mãos humanas. Nós que vivemos o nosso próprio tempo de medo e desconfiança só estamos acostumados a ouvir que algo aconteceu naquela época, que a Segunda Guerra Mundial foi devastadora, que Adolf Hitler foi um ser humano descomunalmente terrível, mas ler em primeira mão o relato de uma sobrevivente de Auschwitz é algo diferente de tudo que se possa imaginar a respeito do que aconteceu. Ter acesso a esse tipo de informação, na integra, quase em loco, muda a forma como você enxerga sua própria época muda você de uma forma intima.
?Quando começamos a nos despir, fomos invadidas por estranhas sensações. Muitas de nós médicas, ou casadas com médicos, tínhamos nos munido de comprimidos de veneno para enfrentar o pior. Por quê? Porque tínhamos vivido um clima de terror e queríamos estar preparadas para qualquer emergência. Embora eu estivesse otimista ao partir, eu também havia me munido com uma arma de autodestruição. Existe algum conforto em saber que, como último recurso, somos donos da própria vida e da morte! Em certo sentido, isso representa a derradeira liberdade. Ao nos despojar de todos os nossos pertences, os alemães sabiam que também estavam nos pedindo para abrir mão daquilo.? (página, 29).
Apesar desse relato estar em um livro que poderia ser apenas de mais uma história qualquer, saber que essas palavras narram acontecimentos reais deixam uma marca e essa é a intenção por trás do livro. É por essa razão que Olga os escreveu. E é por esse motivo que precisamos ler suas palavras até o fim. Compartilhar cada dia de pesadelo e cada momento de dor. Para que a história dela nunca mais se repita. Pois, apesar de tanto tempo ter se passado, de a humanidade ter evoluído, de alguma forma o germe da ideologia daqueles que condenaram Olga e tantos outros a morte, ainda vive, sobreviveu, contra todas as expectativas.
Ainda temos em nosso meio pessoas que não só pensam assim como também proferem a mesma ideologia pregada pelo Nazismo. Que defendem, muitas vezes de maneira insana, essas ideias e que, até mesmo, têm como ídolo Adolf Hitler. Isso é sem dúvida um dos grandes perigos mortais da humanidade e deve ser combatido. Os relatos dos sobreviventes dos campos de extermínio Nazistas servem como um lembrete constante do quanto podemos ser destrutivos, uns com os outros, apesar de nossa aparente racionalidade. O mundo está cheio de loucos que se dizem sãos e apontam os sãos como loucos.
Cabe aqueles que conhecem a verdade, que não negam a ciência e nem a história não permitirem que tais ideologias contaminem as novas gerações, ou estaremos permitindo que tudo o que aconteceu se repita e dessa vez numa escala muito maior e pior. Apesar de pessoas com tais pensamentos ainda estarem entre nós, é inegável os avanços da humanidade desde a Segunda Guerra, fomos aos trancos e barrancos, passamos por inúmeras reviravoltas e períodos que tentavam resgatar valores do Nazifascismo, vide as Ditaturas ou o próprio Holocausto brasileiro, porém com grandes esforços e sacrifícios avançamos muito e não podemos nos permitir regredir, ainda precisamos avançar mais.
Esse é o legado e a tarefa que pessoas como Olga Lengyel, e outros tantos massacrados ao longo da história, nos deixam com seus exemplos de vida e suas histórias. Jamais esmorecer na luta pelo conhecimento, pela verdade e pela democracia, mesmo em momentos obscuros como esse que vivemos. Não podemos falhar, a história já nos mostrou as consequências.