spoiler visualizarThiago Dantas 17/02/2015
Um clássico japonês pouco valorizado no Brasil
O livro conta a história de Yozo Oba, um homem que desde criança, devido a seu medo de outros seres humanos (os quais ele não consegue compreender), começa a interpretar um personagem em seu cotidiano para se proteger das outras pessoas -- o que ele chama de "interpretar o palhaço".
É uma história bastante semelhante a obras de Dostoiévski, Kafka e Clarice Lispector às quais já li. Pelo menos o sentimento quanto ao protagonista e sua decadência é o mesmo. Como não lembrar do homem do subsolo, de "Memórias do subsolo"? Ou do Josef K., de "O processo"? E a terceira perna de G.H., em "A paixão segundo G.H."?
Com certeza as pessoas que gostarem das obras acima mencionadas irão gostar bastante deste livro. É uma pena que não exista tradução brasileira e, por isto, a obra seja quase desconhecida no Brasil -- encontrei apenas uma versão portuguesa entitulada "Não humano".
ATENÇÃO! SPOILERS ABAIXO
O livro se divide em: "Prólogo", "O primeiro caderno", "O segundo caderno", "O terceiro caderno: primeira parte", "O terceiro caderno: segunda parte" e "Epílogo".
No "Prólogo", vemos uma espécie de prévia do que virá a seguir. Outra pessoa nos conta sobre três fotos que viu, de uma mesma pessoa em diferentes estágios da vida e o sentimento de repulsa que sente ao observá-las com atenção.
Em "O primeiro caderno", vemos o relato da infância de Yozo. Ele nos conta de seu terrível medo de seres humanos e o que vem fazendo para aliviar essa sensação. Foi então que aconteceu algo que eu só percebi ao ler sobre a obra na internet após o término da leitura: ele havia sofrido abuso sexual pelos criados da casa! O relato de um evento tão chocante ocorre de maneira tão sutil no livro que eu nem percebi quando li, principalmente pelas palavras que o tradutor escolheu para descrever essa cena; Quando li o livro, não percebi que ele estava contando que tinha sido vítima de abuso sexual, entendi que ele havia sido contaminado pela falsidade humana. Alguns parágrafos depois, ele conta sobre um evento político em que seu pai participa: ele observou que os criados falam mal do evento por trás, e em seguida falam para o pai de Yozo como se tivessem gostado. Por isso, pensei que ele estava falando que por isso aprendeu que as pessoas são falsas. Mas ao ver que essa história tem a fama de ser exatamente sobre um homem que sofreu abuso sexual quando criança, busquei o texto original em japonês: その頃、既に自分は、女中や下男から、哀(かな)し い事を教えられ、犯されていました。幼少の者に対して、そのような事を行うのは、人間の行い得る犯罪の中で最も醜悪で下等で、残酷な犯罪だと、自分はいま では思っています。
Utilizando meus conhecimentos de japonês, eu traduziria desta forma: "Nessa época, as empregadas e os criados já haviam me ensinado uma coisa lamentável, e eu estava sendo violado. Hoje eu penso que fazer tais atos contra uma criança tão jovem é o crime mais feio, baixo e cruel que um ser humano pode cometer."
Enquanto isso, na tradução em inglês, lê-se: "Already by that time I had been taught a lamentable thing by the maids and manservants; I was being corrupted. I now think that to perpetrate such a thing on a small thing on a small child is the ugliest, vilest, cruelest crime a human being can commit."
Percebem a diferença entre "ser violado" e "ser corrompido"?
No resto do livro, vemos a cada vez crescente decadência de Yozo: em "O segundo caderno", vemos fazer um "amigo" devido a ele ter descoberto seu segredo, mas isso veio apenas do medo de que possa revelá-lo; depois, quando já é um jovem universitário, conhece Masao Horiki, que faz aulas de arte com ele, o rapaz mais velho que o leva a um mundo de perdição do álcool, tabaco, contato com prostitutas e penhorarias. Essa vida alivia seu medo de seres humano. No final de "O segundo caderno", ele tenta suicídio coletivo com a hostess de um café, Tsuneko -- a primeira pessoa pela qual ele sentiu compaixão. Ela morre, porém ele sobrevive.
Em "O terceiro caderno", dividido em três partes, Yozo é expulso da universidade e tenta viver com Shizuko, uma jornalista com uma filha pequena (Shigeko), publicando tirinhas em uma revista infantil. Ele tinha medo de atrapalhar a felicidade delas e, um dia, foge de casa para viver com a dona de um bar que ele frequentava e, devido a uma brincadeira mal interpretada, em seguida se casa com uma moça, Yoshiko, que pedia para ele parar de beber. Ele vive relativamente bem com Yoshiko, e consegue sucesso como cartunista, até o momento que ela é atacada sexualmente por um conhecido. O relacionamento de Yozo e Yoshiko nunca mais seria o mesmo. Ele se torna um alcoólatra e, graças às recomendações irresponsáveis de uma dona de farmácia, tenta usar morfina para não precisar do álcool. Eventualmente ele é levado para uma instituição mental para se tratar e, ao receber alta, vai morar com uma senhora de quase 60 anos no interior, e é novamente abusado. Com 27 anos, Yozo termina tão envelhecido que parece ter mais de 40.