João Moreno 13/08/2020Sobre as tramas discursivas da direita (brasileira) radical, cristã e conservadora
Primeiro de tudo eu preciso afirmar que gostei muito do trabalho. Apesar do nome ruim, contestado até por pesquisadoras do livro (PINHEIRO-MACHADO e SCALCO, 2019, p. 58), o 'Ódio como política: a reinvenção das diretas no Brasil' traz um panorama interessante sobre a conjuntura política, mas não só, pois também apresenta um contexto histórico que chega a abarcar o surgimento do Neoliberalismo [1] e as suas implicações, em todo o mundo.
É óbvio que tais contextualizações são limitadas, mas acredito ser necessário analisar 'O ódio' por aquilo que ele propõe, não por aquilo que eu gostaria que fosse. Nesse sentido, e entendendo que o 'O ódio' faz parte de uma coleção - 'Tinta Vermelha' - a qual tem como objetivo incentivar o debate público sobre temas específicos, a obra tenta formar um amplo retrato, ainda que difuso e insuficiente, sobre as direitas brasileiras a partir de várias perspectivas.
A partir de artigo introdutório do professor doutor Luis Felipe Miguel, o qual faz um bom resumo sobre as gestões petista e identifica a extrema-direita como um 'agregado' entre o libertarianismo, o fundamentalismo religioso e o anticomunismo, outros trabalhos perpassam a discussão entre 1) o neoconservadorismo e o liberalismo, entendendo que durantes as crises capitalistas o liberalismo se aproxima, sem pudor, do reacionarismo e de práticas reacionárias, uma vez que o Estado liberal (e o Direito) existe para assegurar a propriedade, a propriedade privada dos meios de produções e as relações jurídicas que permitem a livre troca de mercadorias, nada mais; 2) a aproximação dessa 'nova direita', a qual bebe da alt-right norte-americana, com o nazismo, principalmente num mundo em que, com o "fim da história", as lutas sócio-políticos se desvincularam da 'batalha' por um novo modo de produção e se concentraram em questão identitárias, desvinculando raça e gênero da questão de classe. É assim que determinados setores podem se apropriar de autores marxistas (como Escola de Frankfurt e Gramsci) para insinuar um "marxismo cultural", alheio à luta de classes, o qual se utilizaria do Estado, das instituições e das escolas para propagar o .. comunismo! O tal "marxismo cultural" seria o elo com o nazismo, uma vez que, assim como a defesa da propriedade privada e do conservadorismo moral, o anticomunismo e o seu "bolchevismo cultural" foi um pilar da ideologia nazista; os artigos 3) e 4) se entrelaçam, pois tratam da organização burguesa no país na construção de aparelhos privados de hegemonia, os quais buscam criar consensos (como o da austeridade fiscal ou da demonização do Estado) e criar hegemonia (think tanks como Instituto Mises ou Instituto Millenium, por exemplo). Rocha (2019, p. 47-52), entretanto, quebra um mito ao demonstrar como as direitas brasileiras não se resumem ao alto financiamento empresarial: identificação, formação de identidade, conjuntura e contexto político, além do uso inteligente das redes sociais, foram fundamentais para a sua ascensão, diz; os artigos 6) e 7) exploram os valores "conservadores", mas também "liberais" na periferia do país. A partir de estudo de caso, Pinheiro-Machado e Scalco (2019, p. 53-60) demonstram o esgotamento da política petista (inclusão pelo consumo) na formação das subjetividades dos atores analisados: dos 'rolezinhos' - em que consumir também significava, de forma limitada, "ser alguém" - à crise econômica que explodiu em 2014 com as suas consequências políticas. Para além dos aspectos sócio-econômicos, dizem as autoras, a mudança cultural, com as pautas LGBTQI+, feministas e dos movimentos negros, foi importante para o recrudescimento de parcela da população (Quem não tem um amigo que virou 'conservador' como reação às pautas e conquistas feministas?). Tais fatores, associados à violência da periferia e a apropriação desse tema pela(s) direita(s), explicariam o sucesso de Bolsonaro, à época candidato; o texto 7) se propõe a falar de militarização e Estado e o 8) de como o Direito - ou a "direita jurídica" - é "conservador". E notem: ao falar de "conservador", o autor não se apropria da definição orwelliana de Scruton, mas do sentido real, brasileiro, daquele que, inserido num país de origem escravocrata, reproduz os preconceitos, os estigmas e as materialidades dessa 'instituição'. Em tempos de 'Vaza Jato', a formulação sobre o direito e o neoliberalismo é meio que um 'soco no estômago'; 9) é o texto mais "saboroso" da coletânea, pois põe abaixo o discurso fiscalista e de austeridade apregoados o tempo todo, em todos os lugares: da comparação escrota entre economia doméstica e administração pública à infelicidade do mantra dos ajustes necessários aos investimentos estrangeiros, o texto é didático e um exemplo prático sobre como se opera a luta de classes; o décimo artigo (10) faz um balanço sobre a organização das direitas nas redes sociais e o 11), 12) e 13) discutem sobre o fundamentalismo religioso e a comunidade evangélica e os projetos de poder de líderes religiosos reacionários, a comunidade LGBTQI+ e os feminismos nessa disputa política (parlamentar). É interessante notar como os temas se entrelaçam quando a Frente Parlamentar Evangélica (FPE) registra, desde 2003, crescimento de 20% no número de seus parlamentares, totalizando 198 deputados e 4 senadores até a legislatura 2014-2018 (BULGARELLI, 2019, p. 99). Dialogando com o texto de Vieira (2019, p. 91-96), entendemos que o fundamentalismo extremista de certos setores evangélicos, não todos, nega qualquer outra possibilidade de existência social que fuja de uma interpretação específica, a-histórica e anacrônica do texto religioso (bíblia); no Congresso Nacional (CN), a atuação parlamentar dessa Frente será direcionada a tais propósitos, que excluem, obviamente, a emancipação feminina.
A resenha/resumo, como sempre, ficou maior do que eu desejava. Por fim, gostaria de deixar registrado um fenômeno engraçado, o qual tem a ver com o 'O Ódio' e o contexto que ele propõe a narrar. Por mais insuficiente que possar ser, e ser insuficiente não pode ser uma qualidade negativa do livro, porque ele se propõe a tanto, a ser um pontapé, um início, a polarização retratada nos artigos se apresenta também nos comentários sobre... a obra! Se você procurar por aqui - mas mais especificamente na amazon.com -, vai notar que algumas resenhas insistem em desqualificar 'O ódio' a partir de denominações como "lixo esquerdista" ou generalizações que, de fato, não dizem respeito ao trabalho, como se todos os artigos fossem frutos de 'textões' de Facebook, escritos por um "bando de militantes" (notem como, para certos setores à direita, "ser militante" é visto como algo desonroso, ruim, coisa de desocupado e vagabundo, rs) preocupados com a eleição de Bolsonaro, como se ele, Bolsonaro, não fosse parte do processo que os autores analisam há tempos e tentam explicar (A professora Camila Rocha ganhou o prêmio de melhor tese da Associação Brasileira de Ciência Política com tese sobre a 'nova direita' e o Instituto Mises; Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Scalco fazem pesquisa de campo desde 2009; Flávio Casimiro tem outros livros sobre os aparelhos privados de hegemonia burgueses etc etc etc).
Certamente que o texto de abertura do Gregório Duvivier é um lixo e um desperdício de papel, mas não dá pra resumir o 'O Ódio' a ele, né?
[1] Se você acha que "neoliberalismo" não existe ou que se trata de um "adjetivo pejorativo" adotado por "professores esquerdistas" para "falar mal do capitalismo"... eu tenho muita pena de você. Muita mesmo.
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https://literatureseweb.wordpress.com/2020/08/16/para-entender-um-pouco-as-direitas-um-resumo-de-o-odio-como-politica/