Morgoth Bauglir 12/01/2024
Sobrevivendo no Inferno, São Paulo.
Em 23 de julho de 1993, quatro polícias dispararam contra cinquenta crianças e adolescentes em situação de rua que dormiam nas escadarias da igreja?
?É como uma bola de neve
Morre um, dois, três, quatro
Morre mais um em breve
Sinto na pele, me vejo entrando em cena
Tomando tiro igual filme de cinema
Clic, clec bum!??
Em 29 de agosto de 1993, mais de trinta policiais militares encapuzados e sem uniforme assassinaram 21 pessoas.
?Uma bala vale por uma vida do meu povo
No pente tem quinze, sempre há menos no morro, e então?
Quantos manos iguais a mim se foram?
Preto, preto, pobre, cuidado, socorro!??
Em 1997 o registro dessas tragédias juntas de tantas outras tornariam tema de um dos maiores álbuns de rap do Brasil. Sobrevivendo no Inferno entrega não apenas um registro social do seu tempo, mas um registro atual. Letras deflagradas como munições relatando a doença que traz em sua estrutura a política, polícia, racismo, violência e principalmente o descaso humano.
?Eu tenho uma missão e não vou parar?Meu estilo é pesado e faz tremer o chão?Minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição??
Amadurecimento do grupo faz com que o disco retrate sociedade num contexto onde não permanecem inertes pela falta de vontade em mudar de vida. Letras que iam no passado na contramão deixaram de fazer parte dos shows e de possíveis discos. Sobrevivendo no Inferno representa início de uma fase sem julgamentos.
?Colou dois mano, um acenou pra mim?
De jaco de cetim, de tênis e calça jeans
Ei Brown, sai fora nem vai, nem cola?Não vale a pena dar ideia nesses tipo aí?Ontem à noite eu vi na beira do asfalto?Tragando a morte, soprando a vida pro alto?
Ó os cara só pó, pele o osso?No fundo do poço, vários flagrante no bolso
Veja bem, ninguém é mais que ninguém?Veja bem, veja bem, eles são nosso irmãos também?Mas de cocaína e crack, Whisky e conhaque?Os manos morrem rapidinho sem lugar de destaque
Mas quem sou eu pra falar de quem cheira ou quem fuma
Nem dá, nunca te dei porr@ nenhuma??
Não quer dizer que os Racionais MC?s deixa de lembrar os ouvintes dos riscos em se desviar do caminho mais seguro e honesto mesmo que humilde. Forma sucinta e crua em relatar isso em mais de uma das letras é explícito. Isso seja por meio dos vícios.
?Hã, faz uns nove anos
Tem uns quinze dias atrás eu vi o mano
Cê tem que ver, pedindo cigarro pros tiozinho no ponto
Dente tudo zoado, bolso sem nenhum conto
O cara cheira mal, as tia sente medo
Muito louco de sei lá o que logo cedo
Agora não oferece mais perigo
Viciado, doente, fodido, inofensivo??
Seja pela vida fácil na qual se acredita e procura no crime. Todo trabalho criativo em Tô Ouvindo Alguém me Chamar é de arrepiar. Choro de crianças, mulher, sirene de ambulância, história do garoto que iludido pela vida do crime, cresce e se vê com vários tiros no peito. Arrependido no caminho do hospital, pensando no irmão que estudou e buscou o melhor, na mãe já falecida, questionando se Deus ainda olha para ele ao mesmo tempo que afirma sobre o Diabo estar guiando o caminho dele. Sobrevivendo no inferno, muito longe de enaltecer o crime, deixa claro qual o destino dessa vida. Algo que se tornaria recorrente nos próximos discos.
?Meus aliado, meus mano, meus parceiro?Querendo me matar por dinheiro?Vivi sete anos em vão?Tudo que eu acreditava não tem mais razão, não
Meu sobrinho nasceu?Diz que o rosto dele é parecido com o meu?É, diz: Um pivete eu sempre quis?Meu irmão merece ser feliz?Deve estar a essa altura?Bem perto de fazer a formatura?Acho que é direito, advocacia?Acho que era isso que ele queria?Sinceramente eu me sinto feliz?Graças a Deus, não fez o que eu fiz?Minha finada mãe, proteja o seu menino?O diabo agora guia o meu destino??
Disco que se monta em meio a capítulos, igual um livro de orações, não deixa de trazer uma mistura da cultura cristã e das matrizes africanas. Disco onde Cristo e Ogun tornassem parte intrínseca do mesmo plano de fundo.
?ogunhê!
[?]
Armas de fogo
Meu corpo não alcançarão
Facas e espadas se quebrem
Sem o meu corpo tocar
Cordas e correntes arrebentem
Sem o meu corpo amarrar
Pois eu estou vestido com as roupas
E as armas de Jorge??
Disco que décadas depois tornaria uma obra publicada pela editora de maior prestígio no país, Companhia das Letras. E sendo leitura obrigatória para vestibular da Universidade Unicamp, mostra o poder não apenas da música, mas também do trabalho social do maior grupo de rap do Brasil.
?[?] um sentimento de revolta.
Eu tô tentando sobreviver no inferno.?