Vania.Cristina 28/05/2024
Surge uma nova subjetividade
Eu tenho uma história com o movimento Hip Hop. Quando ele estava surgindo , nas periferias, eu estava começando meu trabalho na gestão pública de cultura. Comecei em 1990. O projeto em que eu trabalhava era de ação cultural com os bairros da cidade. Tínhamos que conhecer intimamente os locais e para isso um agente cultural foi lotado em cada um deles. Esse agente se apresentava às lideranças do território, aos artistas, aos fazedores de cultura locais, e ora atuava como escuta, ora como propositor de ações conjuntas.
Quando a gente faz escuta nos bairros encontra a cultura viva, aquela que acontece de forma espontânea. E em quase todos os locais trabalhados encontramos, então, naqueles primeiros anos da década de 1990, os mc's, os dj's, os b.boys, os grafiteiros, ou seja, as linguagens do movimento Hip Hop.
Estavam nas ruas, nos bailes populares, mas não estavam na grande mídia, não tocavam nas grandes rádios, não se apresentavam nos programas de TV, nem o grafite ocupava galerias ou museus. Não eram artes valorizadas pela imprensa ou pelo senso comum.
Mas toda a periferia já conhecia Racionais MC's. Seu primeiro disco, Holocausto Urbano, lançado justamente em 1990, vendeu 200 mil cópias. Sem publicidade, sem o apoio de grandes gravadoras.
Quando peguei esse livrinho pra ler tinha a intenção de continuar conhecendo e me aprofundando na poesia, em suas diferentes formas. Já sabia que o livro (e o disco, claro), tinha sido escolhido como conteúdo obrigatório no vestibular da Unicamp. Já entendia, então, que o meio acadêmico lhe dava alto grau de importância. Nesses últimos anos, vi vários pesquisadores debruçando-se sobre o tema das artes urbanas. Mesmo assim, eu não tinha ideia do impacto que seria essa leitura pra mim.
Começando pelo texto de apresentação do professor Acaum Silvério de Oliveira, da Universidade de Pernambuco. Que texto, meus amigos! Uma excelente porta de entrada para quem quer conhecer melhor a importância desse disco para a cultura brasileira. Vou usar nessa resenha muito das informações trazidas pelo professor Acauam e um tanto da minha forma de ver as coisas.
O texto começa citando o massacre do Carandiru, em 1992, a Chacina da Candelária, em 1993 e um mês depois, a chacina de Vigário Geral. Todos crimes executados por policiais, agentes do Estado. Entre os mortos, uma maioria de réus primários no Carandiru, crianças e adolescentes em situação de rua na Candelária, e ninguém com envolvimento comprovado com o tráfico, em Vigário Geral.
Fica evidente que existe um projeto de extermínio no país, respaldado por parte da sociedade, que está visando a população das periferias, tenha ou não envolvimento com o crime. E a grande maioria dos mortos é composta por negros. O que Acauam nos diz é que parte das comunidades das periferias sabe disso faz tempo. Sabe que o Brasil foi construído tendo esses alicerces como base. E é nesse contexto que surgem o Hip Hop, o Rap e os Racionais MC's.
Nos primeiros discos do grupo, os conteúdos têm um tom professoral, do rapper que está numa posição privilegiada dentro da comunidade. A partir do disco Raio X do Brasil, o grupo renega essa postura e se assume como parte de um todo.
Com o lançamento do disco Sobrevivendo no Inferno, em 1997, eles furam a bolha e alcançam projeção nacional. Segundo Acauam, a partir daí a obra cria uma nova subjetividade na cultura brasileira, a do sujeito periférico que tem orgulho do lugar de onde vem, e que age a partir desse lugar. Sua ação é urgente, tem pressa, porque está em jogo a sobrevivência das pessoas dessas comunidades. Não há mais o tom professoral, todos estão no mesmo barco. Todos fazem parte da mesma irmandade. A periferia passa a ser um único sujeito com diversas vozes diferentes, às vezes impossíveis de serem conciliadas. Um único sujeito cheio de complexidades, uma única coletividade.
Tradicionalmente a música brasileira já trabalhava com protagonismo popular, mas visando os encontros, as mediações, em prol da mestiçagem. O samba é o grande exemplo disso. Surgiu nas periferias mas se tornou representação de todo um país. A partir desse disco, os Racionais rompem com a tradição conciliatória da nação mestiça. Eles denunciam que o projeto de integração social é uma farsa, porque uma parte considerável da população fica renegada às margens, exposta a vários tipos de violência. A única forma de combater isso é reconhecendo as diferenças, o conflito de classes, reafirmando identidades. É unindo numa coletividade todos que estão nessas condições de desamparo social. Mesmo que sejam diferentes vozes, diferentes pensamentos, estão todos ligados pelo lugar de onde vêm, pela condição de viver à margem.
Os Racionais não fazem apologia ao crime, porque no disco o crime não é solução, muito pelo contrário, é certeza de destino trágico. Ao mesmo tempo, não é o oposto da lei e da ordem, é um caminho de sobrevivência. O rapper não se confunde com o bandido, seus caminhos são outros, usa a palavra como arma. Mas como sujeito periférico, sabe que também pode morrer nas mãos do Estado.
Outra diferença gritante entre essa obra dos Racionais e a música popular brasileira tradicional é a questão religiosa. Para a MPB a cultura popular está relacionada às religiões de origem africana. Já esse disco dos Racionais é construído no formato de um culto cristão. Como representantes da cultura viva, periférica, viviam a ascensão das religiões neopentecostais.
Esse formato adotado contribui para dar corpo à estética complexa, agressiva e transgressora adotada pelo grupo, cheia de símbolos cristãos. A voz da periferia é resultado de uma construção narrativa épica. O lugar de fala não é automático, é construído esteticamente.
Obra revolucionária tanto no âmbito artístico quanto político, seja pela estética vigorosa e pelas opções artísticas assumidas, seja pelo engajamento, impacto social e ousadia da missão de transformação a que se propõe.