Helder 12/04/2022De que lado está a perversão?Kentukis da autora argentina Samanta Schweblin lançado no Brasil pela Editora Fosforo é um dos livros mais hypados da atualidade e foi uma leitura realmente surpreendente.
De que lado está a perversão? Quem condena é condenável? O quanto seguimos nossa vida guiados por nossos preconceitos. O mau está realmente naquilo que vemos ou está entranhado dentro de nós? O que é máscara, o que é real e o que é puro preconceito?
Kentukis são pequenos robozinhos em forma de bichinhos de pelúcia que as pessoas compram para ter um amigo em casa. Eles têm forma de coelho, pandas, toupeiras e até dragões. São fofos e amigos. A diferença é que eles são bichinhos controláveis, porém o controle não está aqui deste lado com seu “amo”, mas sim em algum lugar onde existe uma pessoa que compra uma licença e passa a ver através dos olhos daquele bichinho e fazer com que ele ande, corra e interaja com seu amo.
Dono e controlador do Kentukis não se conhecem. Não é possível escolher quem irá controlar seu Kentukis, nem escolher um Kentukis para ser controlado. O processo é totalmente aleatório. O Kentukis pode estar na Rússia e ser controlado por um peruano. Outros costumes, outra cultura, outra geografia e principalmente: Outra língua!
Esquisito?
Com certeza.
Em uma ideia completamente Black Mirror, Samanta Schweblin potencializa a experiencia de um Big Brother, permitindo que as pessoas possam escolher entre terem suas vidas espionadas “Tendo” um Kentukis, ou serem espiãs da vida alheia, “Sendo” um Kentukis, mas diferente do tão famoso programa de televisão, sem ganhar nada para representar qualquer um deste papeis.
E assim, através de diversas micro histórias, a autora vai nos mostrando esta “experiencia” por diversos pontos de vistas. Bons e ruins. E quem decide isso é o leitor, pois a autora simplesmente vai nos apresentando possíveis configurações de uso desta “tecnologia” sem realizar julgamentos se aquilo é bom ou ruim. Assim temos desde garotas se exibindo sem roupa para uma câmera até velhinhos ajudando jovens a desenvolver talentos musicais, tudo em um mundo anônimo e protegido por telas.
Muito diferente de nossos celulares em redes sociais?
É sabido por todos que a internet trouxe um escudo para a humanidade, que por se ver protegida por trás de um teclado, vê-se no direito de falar e fazer coisas sem medo, já que é como se ninguém fosse conhecer sua identidade. Este é um dos pontos discutido em Kentukis, já que o controlador do Kentukis pode estar fazendo coisas com aquilo que está vendo em sua casa sem você ter a mínima ideia.
Outro ponto de discussão que achei sensacional é o problema de comunicação que não pode ser resolvido pela tecnologia, algo que vejo constantemente na rede em discussões via WhatsApp , onde digo uma coisa e você subentende outras quinze e a “conversa” se torna uma torre de Babel, simplesmente por não haver o “olho no olho”.
Aqui o livro mostra que se houver interesse o ser humano pode encontrar ajustes para possibilitar que os dois lados se entendam e assim a tecnologia pode encontrar seu uso para o bem. Mas é preciso que haja empatia e vontade de entender o outro lado, algo que parece estar cada vez mais escasso.
Por fim, é incrível como este livro mexeu comigo e minhas certezas e preconceitos. No meu mundo, eu digo que não vejo ganho nem em “ser” nem em “ter” um Kentukis, mas nada me preparou para o sensacional final deste livro que veio para mim como um enorme soco no estomago e me mostrou que talvez o que julguemos nos outros seja na verdade aquilo que simplesmente está dentro de nós.
Nos julgamos santos, mas na verdade temos um preconceito tão arraigado que acaba nos transformando em algozes e é duro quando a literatura chega e esfrega isso na nossa cara.
Ser ou Ter um Kentukis?
Novo dilema Shakespeareano!