spoiler visualizarItalo 28/04/2021
O terceiro travesseiro
Não me há dúvidas: ‘O terceiro travesseiro’ tira a sua popularidade duma espécie de surto coletivo-literário que o distorce de forma a nebular a sua mediocridade. Seu mérito está unicamente em ter surgido como surgiu e na época em que surgiu. Pouca coisa, para não dizer ‘nada’, faz sentido nesse livro.
Há uma certa inconstância permanente na forma com a qual se dá a história: a narração ocorre em primeira pessoa e oscila entre um português padrão rigoroso e uma linguagem informal descompromissada, e essa “dualidade” não tem função narrativa alguma, é apenas despropositada e preguiçosa. A construção das personagens também é precária e só há um desenvolvimento significativo de forma reativa à principal, cuja qual permanece estática por toda a história 一 duma hora para outra, todos se constroem e desconstroem-se artificialmente de acordo com as suas necessidades.
Ademais, há um problema de continuidade por todo o livro, tudo acontece extremamente rápido e ‘desencabeçado’. No início, há uma indicação de que umas das personagens sofre por nutrir uma paixão homoafetiva por um de seus amigos numa época decerto mais opressiva que a atual, e questões como “Como lidar com isso?” ou “Sentiria ele o mesmo por mim? Como abordá-lo?” ou “Há como se viver este amor nesta sociedade?” são levantadas apenas para serem jogadas fora ou desenvolvidas da forma mais tosca possível: no capítulo seguinte, ambos transam após a abordagem mais sem sal e sem sentido possível e, já na sequência, firmam um relacionamento com juras de amor eterno. Todo o conflito interno causado por ser homossexual e vivênciar a homossexualidade sob opressão vai direto ao lixo. Em outro momento, uma personagem odiada passa a ser objeto de desejo sob a explicação de “eu não sei explicar”, e a partir daí há um trato porco da bissexualidade.
O que mais me irritou, no entanto, é a contradição entre a mensagem que o livro quer passar com a que ele realmente passa. Logo no início da trama, tem-se uma tentativa de desconstrução da imagem da época acerca do gay em abstrato, mas o que se dá é exatamente o oposto: diz-se algo do tipo “Pensa-se que gays são assim, mas não sou”, e daí a conclusão do narrador se resume a um “Héteros, eu não faço essas coisas, aceitem-me!”. Noutra ocasião, há a apresentação duma série de fetiches sexuais justificados por "estavamos loucos”, afinal a personagem principal não era "promíscua como os demais gays”.
Aliás, a quantidade de cenas sexuais é outro problema, pois atua de forma a diluir excessivamente a carga dramática da história. É como se ambos os amantes não conseguissem ficar juntos sem que transassem, e tudo é explicitado da forma mais medíocre possível. No início, cheguei a pensar que o desejo entre ambos era confundido com amor, e daí tiraríamos uma função narrativa, mas não é esse o caso, são só elementos apelativos que, se não fosse a proposta desconstrutiva, estariam bem em outro formato de livro. Por outro lado, as cenas dramáticas se resolvem em cerca de meia página e através de diálogos robóticos e ‘tosquíssimos’. Num momento um pai esfaqueia o seu filho e noutro o esfaqueado afirma “Nossos pais não são os melhores?”.
Repuxando os elementos que mais me irritaram, há por duas vezes a associação do exótico 一 visto com maus olhos 一 e do precário à religião de matriz africana e ao Nordeste. A cena em que certas personagens chegam à periferia e são rodeadas por crianças pedintes demonstra que, para além da visão classe média alta paulistana que permeia a história, o autor tem uma visão deturpada, ignorante, sobre o local e seus moradores.
Por fim, o final. Muito mais que um plot twist ruim, aquele final é forçado e alheio à própria mensagem do livro. O penúltimo capítulo é um mistifório religioso-cristão caricato: aquilo não passa duma condenação moral.