Dhiego Morais 05/03/2019O Relatório de BrodeckO frio do inverno açoitava o seu rosto. Recolhido contra o próprio corpo e abraçado pelos agasalhos esfarrapados, ele seguia pelas vielas sombrias do vilarejo inóspito a estranhos. Mesmo sozinho, havia algo naquele lugar, naquele momento que não o fazia se sentir só. Ainda que não pudesse vê-los, ele sabia que estavam por ali. Estavam o observando, monitorando, o acompanhando passo a passo. E num lugar tão pequeno quanto aquele, em que todos se conheciam um pouco, as informações vazavam mais rápido do que a água que escorre pelos dedos. Sabia o que tinha que fazer; haviam sido muito claro. O passado deixa um gosto amargo na boca de algumas pessoas, mas são as tormentas da guerra, os percalços do medo que resgatam tudo o que há de enterrado na alma dos homens. Ele sabia muito bem o que deveria fazer. Mas o modo, o modo ele decidiria. A verdade às vezes precisa ser escrita com sangue. E dessa tinta todos tinham um pouco.
O Relatório de Brodeck foi o último lançamento da editora Pipoca e Nanquim em 2018, e, assim como foi veiculado pelos editores e pelo público fiel, é facilmente a melhor HQ do ano, de fato.
“É preciso entender que a guerra ainda estava dentro de nós. Ela destilara nos sobreviventes uma feroz desconfiança que agitava seu sangue e tripas.”
Adaptado do romance e obra-prima de Philippe Claudel por Emmanuel Larcenet, em dois tomos entre 2016 e 2017, aqui conhecemos a história de um vilarejo empobrecido e de seus moradores, pouco tempo depois dos eventos de uma grande guerra. Embora nada seja dito explicitamente, não fica difícil ao leitor calcular a época como sendo pouco tempo depois da Segunda Guerra Mundial, em um ambiente que pode se estimar como o antigo Império Austro-Húngaro, entre uma fala ou outra das personagens. Claro que é tudo muito proposital. Tanto Claudel quanto Larcenet mantêm os ares de dúvida, e é justamente isso que atribui o caráter não somente atemporal da obra, como também o de adaptabilidade à época e espaço.
Brodeck é o nosso protagonista, um tipo de escrivão, responsável por produzir relatórios que são enviados à administração de outra vila, responsável pelo vilarejo humilde. Por sua condição alfabetizada, Brodeck é intimado a redigir, talvez, o relatório mais importante de sua vida: após voltar do armazém com a manteiga solicitada, ele se dá conta de que um assassinato foi cometido; um estrangeiro foi morto e cabe a Brodeck transcrever um relatório que assegure a necessidade de o vilarejo ter ceifado a vida do homem. Assim, ele passa a ser o advogado de todos. O tempo é escasso e logo a demora por detalhes para a composição do relatório promove a ebulição de inúmeros medos nos mais variados moradores, que transformam não somente as pessoas, mas o vilarejo como um todo.
Em O Relatório de Brodeck, Manu Larcenet reconta por meio de suas ilustrações espetaculares uma série de momentos que envolvem a pequena vila. Por meio das memórias do protagonista, o leitor mergulha nos eventos que antecederam a guerra e suas consequências para com o vilarejo. A forma como os soldados são retratados ao aportarem ali, como monstros — ainda que de início não se apresentem assim —, lembra muito a maneira figurada utilizada em Maus, outra importante história em quadrinhos sobre o período da guerra. Entre os flashbacks, o leitor também tem vislumbres do horror dos campos de concentração, das barbaridades impostas aos “estrangeiros sujos”, a raça inferior, e dos momentos finais da guerra, do abandono, da letargia da liberdade e das transformações incutidas na mente dos camponeses, encorajados a denunciar estrangeiros, inimigos da pátria e mulheres, muitas delas e deles somente para arrefecer a sede de sangue dos soldados.
“Sou o único inocente em meio a todos. O único. Escrevendo essas palavras, subitamente me dou conta do perigo que isso representa. Ser inocente em meio aos culpados... É, em suma, muito parecido como ser o único culpado entre os inocentes.”
Aproveitando que falamos da arte de Manu, é imprescindível comentar sobre o impacto de suas ilustrações na mente de quem lê. Utilizando-se apenas do preto e branco, o autor dá vida a uma obra dolorosa e que reconstrói os pesadelos que se acometeram contra os mais humildes, aqueles mais afastados das capitais e dos eventos mais famosos da guerra. Foram essas pessoas que sentiram as mudanças em corpo e mente intensamente. Com um realismo que impressiona, o nanquim esconde as feições quando assim são necessárias, dão corpo a um clima que mescla a tristeza e a soturnez próprias do enredo. Toda a desconfiança é habilidosamente tingida nas personagens, que as vestem e dão singularidade a cada personagem. É assombroso o que Larcenet faz com o pincel, como traduz magistralmente a essência do romance de Claudel.
A chegada do estrangeiro é narrada em O Relatório de Brodeck, bem como o reflexo que a figura corpulenta e de poucas palavras, mas muitos sorrisos e notável curiosidade promovem no vilarejo. Nesse ponto, a metáfora do medo do desconhecido, do que não é nativo é visível.
Temerosos pela consequência de seus atos, o vilarejo vê na oportunidade do relatório de Brodeck a chance de se esquecer de todo o carma e do ocorrido. É a confissão de homens marcados pelos horrores da guerra. Mas cabe ao protagonista produzir o relatório certo. E certo pode adquirir muitos significados ali.
“Eles estão todos os domingos na minha igreja, e eu vejo o rosto impassível daqueles hipócritas! Vejo a sua fachada de humildade, forçada, exagerada, e conheço todas as indignidades deles, seus segredos mais asquerosos... Também sinto o cheiro do suor deles, Brodeck, acre e rançoso... Não é água benta o que lhes escorre do cu, pode acreditar em mim! É o medo.”
Com diálogos impecáveis, como a conversa entre Brodeck e o padre, bem como de cenas sem qualquer fala, mas igualmente impressionantes, O Relatório de Brodeck é certamente um dos melhores quadrinhos que já tive a oportunidade de ler e, tão certo de como o romance do qual foi adaptado é uma obra-prima, seria imperdoável não estender tamanho elogio a obra de Larcenet.
Dotado de toda a carga emotiva e angustiante de que se encontra em Maus, por exemplo, além de uma composição quadro-a-quadro pensada com maestria, O Relatório de Brodeck é facilmente uma das melhores adaptações em quadrinho em muitas décadas, uma obra que deve se manter imortal, ainda que a memória de quem leia se esvaia.
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