Gustavo.Romero 07/03/2021
Todas as faces de Tolstoi
A questão sobre considerar um livro "clássico" e continuar pertinente em qualquer época é tanto pungente quanto inconclusiva. Afinal, o que universaliza o alcance de uma obra, mais do que sua estrutura ou temática específicas, é a precisão e perspicácia em atingir o âmago do espírito humano.
"Anna Kariênina" é, nesse sentido, um clássico dos mais primorosos. Mesmo com a coleção de personagens bem construídos, o protagonista da obra é o espírito humano, considerado em todos os aspectos - potencialidades igualmente construtivas e destrutivas, felicidades e angústias, aquilo que Stiva destaca como "toda a diversidade, todo o encanto, toda a beleza da vida é feita de sombra e de luz." (p.54) Pois se os humanos parecem envidar esforços para provar que a felicidade, fortuita em essência, aparente ser um estado permanente, é somente na intimidade do espírito que o Real acontece. Afinal, nas célebres palavra de abertura do livro, "todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira." (p.14)
É nesse sentido que concordo e discordo do posfácio de Janet Malcolm: quanto à primeira opção concordo que há no livro, de fato, um intensivo recurso ao universo humano onírico, aquela camada autêntica em que não há bem ou mal, em que a expressão pura e primitiva do ser se manifesta sem os constrangimentos externos; porém, por outro lado, não posso coadunar à sugestão dissimulada de Malcolm de que esse recurso transformaria a obra num grande (ainda que bem elaborado) "falsete" - "vivenciamos a história como vivenciamos nossos sonhos, sem preocupação com sua falta de lógica (...). Mas aí já é tarde demais para que possamos reverter o feitiço de Tolstoi." (p.835).
Ora, é precisamente o ato de Tolstoi abraçar essa "feitiçaria", essa camada incontrolável e incontornável (chamaria a psicanálise posterior, essa pulsão intensa de vida e de morte) que possibilita ao autor transitar com tamanha maestria no campo concreto dos acontecimentos. A grandeza da obra, que pode ser tomada em vários aspectos, pode ser particularmente apreciada pela profundidade complexa de cada personagem - ego e a forma como suas questões mais íntimas, seus "sonhos" - fantasias - são lançados a todo momento uns contra os outros, em diálogos absolutamente factíveis. Assim, Anna, Liévin, Kitty, Dolly, Vronski, enfim, tantos outros, são tão perfeitamente únicos em suas imperfeições como seriam qualquer um de nós, tão únicos mas todos Tolstoi. Nós somos todos Tolstoi.