Marinho 25/09/2020
Autoritarismo. A herança que vovô nos deixou.
A história pode nos servir a dois propósitos, a princípio, antagônicos: lembrar e esquecer. “Sobre o autoritarismo brasileiro” não é uma grande obra da Lilia, como “Brasil, uma Biografia”, mas possui uma intenção clara, e é bem-sucedido em atingi-la: mostrar em como a humanidade — e apesar de o título do livro ter a palavra “brasileiro”, acredito que isso se aplica a toda a humanidade — “escolhe” determinadas narrativas do nosso passado, e seletivamente “esquece” outras. Pois, escrever a história não se trata apenas de trazer à luz os fatos, mas também de interpretar, tecer uma narrativa a respeito desses acontecimentos. Em tempos de ascensão do autoritarismo em diversos regimes políticos — e, particularmente, no Brasil —, observamos a construção de narrativas que se utilizam da nostalgia para tentar resgatar uma moralidade conservadora, baseada nos valores familiares, na ordem e na hierarquia. A partir do resgate de fatos sobre a violência estrutural que permeou as nossas relações cotidianas desde a época da colonização, Lilia nos expõe que tal passado, de fato, nunca existiu.
A imagem do brasileiro de um povo pacífico, calmo, avesso ao conflito, e tolerante quanto às igualdades de gênero, raça e etnia, não se sustentam a uma análise histórica comprometida com os fatos. Ao longo dos seus oito capítulos do livro, Lilia pontua diversas questões estruturais que consolidam o autoritarismo como um elemento constante na formação da sociedade brasileira: racismo, mandonismo, patrimonialismo, corrupção, desigualdade social, violência, opressão de raça e gênero, e intolerância. Se somos o produto de uma construção histórica, fica fácil compreender porque somos um país tão violento quando partimos para analisar a origem de tais aspectos estruturais.
A violência se inicia no momento em que Cabral e cia. coloca seus pés na areia de Porto Seguro. Pero Vaz escreve no que seria o primeiro documento escrito em terras brasileiras a respeito dos indígenas: “é preciso salvar esta gente”. Começa ali o processo de violência epistêmica que, sob o argumento de uma “missão divina civilizatória”, consolidaria a colonização com base no extermínio e na escravidão. A estratégia utilizada, de uma grande concentração de poder nas mãos de um senhor de vastíssimas terras, na qual este seria a representação da lei e do estado, lançaria as bases de uma sociedade profundamente patriarcal e calcada na subjugação de um indivíduo por outro. Com a delegação de poder fiscalizador e explorador da coroa portuguesa a estes senhores — que é necessário ressaltar, embora seja óbvio: homens brancos heterossexuais cis-gêneros —, decorrem as desigualdades que até hoje, na ausência de políticas públicas adequadas de reparação, permanecem enraizadas.
Lilia quebra, através da análise dos fatos, diversos argumentos que se entranharam no senso comum, muito em parte pela tentativa de manutenção dos privilégios dos grupos dominantes. Como, por exemplo, o difundido por Gilberto Freyre de que o Brasil seria uma democracia racial, ou de que, devido à miscigenação observável em nossa sociedade, a escravidão no Brasil teria sido mais “branda” (como se isso fosse possível); o racismo, menos “perverso” (com os índices mostrando o contrário); a convivência entre os gêneros, idílica (também com os casos de feminicídio revelando o oposto); a relação com os indígenas como “amistosas” (mesmo com a queda massiva da população, que podemos considerar como genocídio), e até mesmo que a nossa ditadura militar se tratou de uma “ditabranda”. Para a autora, tais argumentos são tentativas de negar a real dimensão da violência, e tal negação dificulta a discussão profunda dos nossos conflitos. Como resolver um problema que se finge não enxergar?
Em tempos de populismo e de ameaça à integridade democrática e institucional, alguns líderes ascendem com base em discursos “nostálgicos” sobre o nosso passado. Apresenta-o como glorioso, com heróis, com momentos marcantes — revolução democrática de 64 (???) —, mas, seletivamente, “esquece” todo o histórico de violência que marcou com ferro e fogo o legado de nossa população. A história, então, passa a ser objeto de disputa de narrativas, ao passo que esse discurso convence facilmente parcelas da população que se encontram descrentes com a corrupção generalizada da classe política e com os índices de violência. A saída apresentada por este discurso é autoritária: combater violência com violência.
Conclui-se que o buraco é bem "mais embaixo", que a corrupção e a intolerância não pertence apenas à classe política, mas está permeada em todos os setores sociais, e que não existem saídas fáceis para esta crise. A autora, porém, conclui com uma frase acalentadora: “toda crise é capaz de abrir uma fresta, pequena que seja, de esperança”. Por menos que pareça, o nosso fim também pode ser um começo. As soluções aos desafios de nosso tempo não serão nada fáceis, uma vez que estes são produtos de centenas de anos; não é o mesmo que dizer, porém, tempos melhores serão impossíveis.