Otávio Augusto 24/01/2024Família e política em um livro sóQuem pesquisar os melhores livros do realismo mágico latino encontrará três principais obras: Cem anos de solidão, Pedro Páramo e A casa dos espíritos. Já tendo lido os dois primeiros, que muito me encantaram, resolvi ler A casa dos espíritos. Apesar de ser o livro que menos me agradou dos três, gostei muito; pretendo ler mais livros desse gênero.
Inicialmente, a obra lembra muito o livro de Gabo. Acompanharemos o desenvolver da família Del Valle e Trueba ao longo de três gerações, a partir do primeiro casal de protagonistas do livro: Clara Del Valle e Esteban Trueba. A família formada por eles passará por melodramas românticos, conflitos de gerações e atritos políticos ao longo do enredo, que se desenvolve em um cenário não citado, mas que podemos inferir se tratar do Chile devido às pistas que a autora nos dá - ela cita uma cordilheira constantemente (Cordilheira dos Andes) e o poeta da revolução (Pablo Neruda). A família Del Valle representa o progresso, sendo a mãe de Clara uma mulher sufragista e seu pai um político liberal, ao passo que a família Trueba, mais especificamente Esteban Trueba, personifica o patriarcado conservador, capitalista e avesso ao progresso. A união desses dois personagens contraditórios já dita uma das temáticas mais importantes do romance - a política.
Narrativamente A casa dos espíritos possui todas as características do realismo mágico. O livro possui muito do fantástico, principalmente na figura de Clara, uma mulher capaz de prever o futuro e de mover objetos com a mente, além de se comunicar com espíritos do além. Ademais, vários acontecimentos inesperados são narrados como se fossem banais; sem entregar muito do enredo, Clara possui uma irmã de beleza afrodisíaca, detentora de cabelos verdes; o tio de Clara, ainda nas primeiras páginas, acaba morrendo em um acidente, mas volta à vida depois da família rezar por ele; a família possui um cachorro enorme e que não se parece, de fato, com um cachorro - lembra uma mistura de animais, como uma quimera mitológica. A presença desses elementos dita o tom da narrativa: um texto com muito do realismo, mas também do mágico, em uma combinação leve e bem humorada que muito me agrada. Outro mérito da autora é compor uma narrativa de tempo não linear. Assim como em Cem anos de solidão, lemos constantemente trechos que prenunciam eventos a serem aprofundados capítulos à frente do ponto em que estamos. São curtas revelações que instigam a curiosidade do leitor e dinamizam o livro com um tempo maleável. Não é à toa que, pontualmente, aparecem personagens místicas intituladas de "Moras", uma clara referências às moiras da mitologia grega, irmãs que guiavam o destino de todos.
Em contrapartida, Isabel Allende toma algumas decisões narrativas desinteressantes. A primeira delas é o fato de que a maioria dos personagens, à exceção do patriarca Esteban, possuem pouquíssimos diálogos; na verdade, a maior parte do texto é constituída por uma narração em terceira pessoa que nos conta os eventos da família, de maneira que lemos muitos discursos indiretos e poucos discursos diretos. Esteban foi muito bem trabalhado em suas falas conservadoras e despóticas, mas Clara, um dos pilares da família, e os outros personagens carecem de maior voz narrativa. Talvez essa escolha tenha sido proposital a fim de nos fazer sentir o silenciamento da maioria das pessoas da história, em contraponto ao homem que, durante quase todo o romance, é o único que tem influência na sociedade, uma voz dotada de poder político.
Outro elemento que deixa a desejar é a polifonia do romance. A maior parte dele é narrada por Alba, a neta de Clara, e há capítulos em que o próprio Esteban nos conta a sua visão da história. Havia um potencial para termos um grande romance polifônico, com aprofundamento de múltiplas perspectivas, mas a autora escolhe Alba como a narradora de quase todos os capítulos da obra. Seria interessante termos mais espaço para Esteban, o contraponto à sua própria neta Alba, e para os seus filhos.
Nesse contexto familiar, presenciamos amores verdadeiros, proibidos e violentos; há uma dose bem-vinda do melodrama latino aqui, complementada por temáticas de maior substância. Vemos o progressismo ganhar cada vez mais força à medida que a família avança em gerações. É por meio do conflito entre tradição e modernidade que o livro se desenvolve, passando por temas como maternidade, propriedade, capitalismo, socialismo, oligarquismo, desigualdade social e espiritualidade. Os personagens têm características e ideias próprias que os tornam muito vívidos, a ponto de que eu desenhei uma árvore genealógica com anotações das peculiaridades de cada um. Apesar de não termos nomes repetidos ou sete gerações como em Cem anos de solidão, compor uma árvore genealógica da família foi essencial para que eu não me perdesse na infinidade de acontecimentos e pudesse absorver melhor a profundidade do romance. Considero que um dos prazeres desse tipo de livro consiste nessa exata composição, por parte do leitor, do fio narrativo.
Acima de tudo, A casa dos espíritos nos diz que devemos respeitar nossos familiares antes de quaisquer ideias políticas. Uma família pode ser desmoronada por aqueles que insistem ferrenhamente em ideologias retrógradas, sem jamais compreenderem que o mundo é organismo vivo, em constante mudança. Para que possamos rumar a um futuro melhor, é necessário conhecermos a nossa própria história, seja a história familiar, pessoal, seja a história de nosso país, política. Isabel Allende conseguiu escrever um livro de alto valor literário, histórico e político, no qual a realidade e ficção se entrecruzam organicamente por meio de personagens vívidos e reais. Foi publicado em 1982, mas também poderia ter sido ontem.