Cris 15/01/2015
“No dia seguinte ninguém morreu.”
Com esta sentença definitiva e arrebatadora dos espíritos, inicia-se a trama do livro que será resenhado a seguir, As Intermitências da Morte, de José Saramago.
Como podemos ver, já pela primeira frase (e obviamente pelo título) o problema da trama nos é apresentado. Em um país que não nos é nomeado pelo narrador, no dia 1 de janeiro de um dado ano a morte encerra suas atividades, e nem um indivíduo sequer a partir do primeiro minuto daquele fatídico dia passa a morrer, e todo o processo natural que levaria à morte diversas pessoas no trânsito do ano anterior para o presente é interrompido, no estágio em que estivesse; ou seja, pessoas que tivessem sofrido algum acidente e estivessem com ferimentos graves não passariam desta para melhor, não importando a gravidade desses ferimentos. Para este fenômeno o narrador deu o nome de morte suspensa, cujos indivíduos não conseguiriam melhorar de situação e saúde ou mesmo que fossem levados à morte, ficariam nessa de ir e ao mesmo tempo não ir. Pessoas que já estavam doentes, em casa ou nos hospitais, permaneceriam doentes, em sua dada situação. Com esta problemática, toda a trama se desenvolve.
Em um primeiro momento, podemos nos levar a crer de que isto seria o paraíso para a humanidade, a certeza de que a morte nunca mais nos conseguiria vencer, que poderíamos viver eternamente e nunca mais nos preocuparmos em perder pessoas que amamos. Mas Saramago, através de seu narrador, nos faz perceber que não é bem a felicidade que esta situação nos traria, nos traz outros lados da história, que nosso egoísmo, talvez, não nos faça perceber em um primeiro momento, como dito. Juro pra vocês que minha vontade era de contar como que isso acontece no livro, mas pensando bem é melhor deixar que vocês mesmos descubram, e que tenham a surpresa maravilhosa que tive ao ler. Qualquer coisa dita a mais acerca disso pode ser um grande spoiler, dado que é o tema central que ronda toda a história do romance.
Numa primeira parte do livro, nos é apresentado todas as consequências trazidas pela morte com sua decisão de interromper seus procedimentos, em um nível micro e macro. Já na segunda parte (que muitas pessoas não gostam muito, mas que eu, particularmente, achei tão genial quanto a primeira, mostrando a que nível de narração e inteligência este autor pode chegar), a morte em si torna-se protagonista da história, sendo antropomorfizada, com todos os detalhes e ações que pode alcançar. Sem mais detalhes sobre isso também, juro pra vocês que a graça é a surpresa, então a preservem!
Muitas pessoas dividem esta história em três partes, na verdade. Resolvi dividi-la em apenas duas para manter a surpresa, e que a parte “do meio” fosse descoberta por vocês mesmos. Em todas as três partes somos transbordados pela ironia e pelo humor ácido do autor, além de suas inúmeras e ininterruptas críticas, aos diversos segmentos da sociedade, suas instituições e como cada uma reagiu à essas intermitências da morte. Já é sabido que o autor tem um estilo próprio de escrita que, nas primeiras vezes, pode assustar bastante e até causar estranhamento e distanciamento do leitor para com este. Mas tenho que dizer que tudo isto não passa de tolice; falo com conhecimento de causa e experiência. Aos poucos você percebe o quanto isto é necessário (até para suas histórias poderem se desenrolar da forma correta e mais próxima da realidade) e até facilita a leitura (não levando em conta momentos de reflexão levados pela trama e pausas para absorver tudo o que é dito), tornando-a fluída com o passar do tempo e das obras lidas e até agradável, de certa forma. Para os iniciantes do autor, como eu o era no ano passado, sugiro calma, paciência e que não se sintam acanhados, mas que estimulados pelo desafio e pela descoberta e prazer que, talvez, isto os trará. Vale comentar que o autor é um dos muitos ganhadores do Nobel e que, particularmente, acho merecidíssimo.
Por último, acho válido relacionar com um caso recente, ocorrido aqui no RJ, que mostra como o tema levantado por Saramago, principalmente o do lucro que é obtido com a morte e sua exploração (ou a falta dela, neste caso) é crucial para estes setores e de como é um tema que não nos abandona, assim como a corrupção que assola todos os segmentos, o que não seria diferente no caso da relação com a morte.
Notícia: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/01/policia-faz-operacao-para-coibir-venda-ilegal-de-sepulturas-no-rj.html
Ps.: Não posso deixar de citar que acho o início desse livro o mais INCRÍVEL que já li, simplesmente genial. Minha vontade era de o ter posto na íntegra para vocês, mas decidi, a pedido de uma amiga, mantê-lo em sigilo para aguçar a curiosidade e a surpresa de vocês, hahaha. Para isso pus só a primeira frase, que não deixa de trazer o impacto. Leiam logo e depois me retornem o que acharam da leitura ;)
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