spoiler visualizarFabí 08/07/2016
On the Road - a vida hedonista
“…Qual é sua estrada, homem? – a estrada do místico, a estrada do louco, a estrada do arco-íris, a estrada dos peixes, qualquer estrada… Há sempre uma estrada em qualquer lugar, para qualquer pessoa, em qualquer circunstância. Como, onde, por quê?…”
Essa citação é uma de várias que conseguem sintetizar de alguma forma o que On the Road (Na estrada ou Pé na Estrada na tradução brasileira) significa. Lançado em 1957, Jack Kerouac escreveu o que viria a ser conhecido atualmente como bíblia da geração beat, um marco na literatura e um registro de loucuras fluidas que era o modo de viver dos chamados beatnics: uma chama perene fervendo nas veias que clama por liberdade, soltar as amarras das convenções sociais e do senso comum, viver nos prazeres mergulhados no hedonismo e na luxúria.
Há controversas quanto a origem do significado do termo ‘beat’: comumente associado às batidas do jazz efervescente da época (que possuía AQUILO), ou se referindo aos batimentos cardíacos implorando por movimento e mudança, ou até mesmo sendo alusão ao termo abatido. A busca por um estilo de vida nômade e espontâneo, no entanto, não é um anseio exclusivo dos beatnics, sendo muito percebido nos hippies e nas gerações seguintes entre os adeptos da contra-cultura. On the Road, portanto, foi um dos registros mais explícitos e contundentes da época.
Marcado pela oralidade e o que Kerouac chamava de “fluxo de consciência”, a narrativa mescla a realidade nua e crua com os devaneios de Sal Paradise. Pessoalmente, creio que esses momentos se apresentaram de forma um tanto quanto heterogênea com o ritmo alternando de bem detalhista à rápido e insignificante, porém é compreensível já que as minúcias são reservadas principalmente para quando Dean e Sal estão juntos.
O que me leva a falar sobre o que acontece e o que tem de tão relevante nesse livro para os que nunca ouviram falar: a história se passa na transição da década de 1940 para os anos 50 nos Estados Unidos majoritariamente. Seus personagens possuem reflexos na realidade sendo o narrador da história, Sal Paradise, o próprio Kerouac; o famigerado Dean Moriarty uma representação do “vagabundo iluminado” Neal Kassady; Allen Ginsberg como o “angustiado poeta vagabundo de mente sombria” Carlo Marx; e William Burroughs sendo o intelectual drogado Old Bull Lee.
A trama se inicia explicitando os maus momentos pelos quais Sal Paradise estava passando, o perfil do narrador pode ser descrito, a princípio, como um pensador tímido envolvido em idealismos, sempre tentando acompanhar as pessoas que o encantam, até a chegada de Dean Moriarty, que é quando a vida na estrada se inicia.
“…eu me arrastava na mesma direção como tenho feito toda a minha vida, sempre rastejando atrás de pessoas que me interessam, porque, para mim, pessoas mesmo são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo, aqueles que nunca bocejam e jamais falam coisas óbvias, mas queimam, queimam, queimam como fabulosos fogos de artifício…”
Mas apesar de compartilhar loucuras, mesmo no egoísmo que o hedonismo pode trazer, Sal ainda cuidava e se preocupava com os amigos (principalmente se tratando de Dean). E, ainda, exigia conexões profundas com suas amantes (pelo menos com a maioria delas).
“Garotas e rapazes da America têm curtido momentos realmente tristes quando estão juntos; a artificialidade os força a se submeterem imediatamente ao sexo, sem os devidos diálogos preliminares. Não me refiro a galanteios – mas sim um profundo diálogo de almas, porque a vida é sagrada e cada momento é precioso.”
Há alguma complexidade em Sal mesmo escondida em toda a admiração e curiosidade em Dean, há momentos que mostra o quanto ele mudou e o quanto suas experiências abriam seus olhos para uma concepção nova de viver.
“…gosto de muitas coisas ao mesmo tempo e me confundo inteiro e fico todo enrolado correndo de uma estrela cadente para outra até desistir. Assim é a noite, e é isso que ela faz com você, eu não tinha nada a oferecer a ninguém, a não ser minha própria confusão.”
Dean é a grande estrela dessa obra, o mundo de Sal gira em seu entorno, numa relação que começa por interesse e intriga: Dean imerge Sal em uma vida fervente aberta a inúmeras possibilidades, enquanto Sal lhe fazia companhia nos excessos que faziam Dean fugir dos fantasmas de um passado que já viu demais.
“…comecei a ficar contagiado pela doidera de Dean. Ele era apenas um garotão tremendamente apaixonado pela vida e, mesmo sendo um vigarista, só trapaceava porque tinha uma vontade enorme de viver e se envolver com pessoas que, de outra forma, não lhe dariam a mínima atenção…”
Sal pinta um Dean sagrado, um Baco entre as ninfas, dedicado a viver no gozo não importando com as consequências. Era o perfeito anti-herói jocoso com um passado sofrido entre reformatórios, mesas de bilhar, bebidas, cigarros e carros roubados. Inúmeras vezes Sal defendia atitudes imperdoáveis de Dean, porque via sua agonia sorridente e era extremamente fascinado por ela.
Dean era de fato um homem miserável. Ninguém prestava atenção nele como alguém com potencial, o viam apenas como um delinquente até Sal, Carlo e outros darem ouvidos a ele. Sem dúvida alguma suas excentricidades eram formas de fuga, de negar suas tragédias e preencher o vazio da ausência de amor familiar (paterno, principalmente). Sua inconstância e a forma como lida com suas inúmeras amantes apenas confirma o quão desajustado e irresponsável ele é para seu contexto: não sabendo amar, sendo apático e egoísta, descontando qualquer tipo de frustração nas bebidas e farras tentando esconder sua solidão no entusiasmo, assim como ele aprendeu crescendo entre todo tipo de vagabundo.
O livro não se aprofunda no perfil psicológico das mulheres, que em alguns momentos são retratadas apenas pelo físico com doses de machismo. Há, porém, as que se destacam e se mostram verdadeiramente interessantes como Marylou, Camille e Terry.
Marylou é uma versão feminina um pouco menos exótica de Dean, com quem vive uma paixão explosiva. Ela vivia também uma vida hedonista não se importando com os sentimentos alheios, sendo igualmente apática. Mesmo amando Dean na sua inconstância, ela desejava alguém ao seu lado, uma família e uma casa (que era o símbolo máximo de conquista e sucesso para as mulheres da época). Vendo que não existia futuro se envolvendo com Dean, e não querendo nada com Sal, Marylou abandona sua vida na estrada sobrevivendo da maneira que sabia, sendo tachada de puta, piranha e estúpida algumas vezes. Dean, no entanto, era obcecado por ela e a seguiu por muito tempo até o final dramático de sua relação, digno de um quase Sid & Nancy.
Camille foi a esposa mais duradoura de Dean, com quem teve duas filhas, e era mais centrada e responsável mesmo nessa relação de completo desgaste. Ela se entristecia toda vez que era abandonada por Dean, que a deixava sem dificuldade trocando-a por mais loucuras. Mesmo definhando, ela o amava de alguma forma.
E ao contrário de Camille, Terry sabia que a sua relação com Sal era temporário. Foragida de um marido que a agredia, tentava sobreviver criando seu filho. Sal e Terry tiveram uma conexão de ternura tão especial que o fez cogitar viver essa vida pacata colhendo algodão, recebendo uma merreca e vivendo numa barraca humilde pelo resto da vida. Terry era resiliente, forte e sedutora.
Mas aos poucos, ao longo de muitos quilômetros de estrada, pessoas, festejo e conversas profundas; Dean e Sal se distanciam algumas vezes, uma separação pior que a outra, até que gradualmente percebe-se o quão decadente e insignificante tudo aquilo pode ser. Sal percebe mais a infelicidade de Dean e odiava a forma como ele o largava sem o mínimo interesse em saber se ele ficará bem. A gota d’água é percebida no final corrido: uma aventura no México que termina com Sal sofrendo terrivelmente uma disenteria, largado por Dean num momento de necessidade.
A amizade ao fim da trama perde parte do fascínio. Sal percebe que Dean precisa dele, mas recusa acompanhá-lo em mais uma jornada, mesmo ainda tendo uma atração magnética por ele.
Minha experiência com On the Road foi muito lenta. demorei muito para terminar a leitura, pois muitas partes não me prenderam e a narrativa algumas vezes chegava a ser maçante pela mudança dos ritmos dos acontecimentos. O final foi muito rápido, mas me fez questionar o que aconteceria se o livro não terminasse lá. Será que Sal e Dean se encontrariam novamente? Dean consegue manter laços e ser o marido e pai que Camille espera que ele seja? Como está Marylou? Será que Sal e Terry se encontrariam novamente?…
Consegui captar também os prós e contras da tão famigerada liberdade hedonista, que o livro consegue guiar bem. Uma vida nômade é de fato linda e experimentar, conhecer, viver, não se prender a rotinas ou expectativas da sociedade realmente te faz uma pessoa melhor; mas é evidente também que se há desequilíbrio, excessos e corações partidos, tudo começa a perder sentido.
On the Road, portanto, não é uma leitura para todos, mas sua mensagem é universal.
“Ficamos maravilhados, percebemos que estávamos deixando para trás toda a confusão e o absurdo, desempenhando a única função nobre de nossa época: mover-se”
site: https://doisgrausdemiopia.wordpress.com/2016/07/08/on-the-road-a-vida-hedonista/