Craotchky 03/12/2019Inclassificável"Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer."
Maiêutica. Eis a palavra grega usada para descrever o processo socrático no qual alguém, através do diálogo, faz seu interlocutor(a) trazer à tona conteúdos que estavam nele(a) de forma inconsciente. Assim é comum tecer uma analogia com o ato do parto. Sócrates, ao conversar com alguém, ajudava essa pessoa a "parir" as ideias que já estavam presentes nela. Neste sentido penso que o Livro do desassossego, em alguns momentos, pode fazer com que nasça no(a) leitor(a) reflexões que estavam até então inacessíveis.
Constituído por fragmentos do semi-heterônimo de Pessoa, Bernardo Soares, o Livro do desassossego é um livro incomum. Em minha particular opinião este livro mais aproxima-se de um diário pessoal embora muitos vejam aqui o trabalho no qual Pessoa mais se aproximou do gênero Romance. O livro é destituído de encadeamento narrativo. Os fragmentos que formam a maior parte do livro são individuais e desconectados. Os temas destes fragmentos são de tal forma variados que a tarefa de os definir num único conceito é difícil.
As duas primeiras páginas foram o suficiente para que eu ficasse impressionado quanto a profundidade das reflexões e a ligeiramente peculiar prosa poética. O livro faz jus ao título: provoca desconforto desde o início, deixa o leitor(a) desinquieto, desassossegado. Desde o princípio brotam frases que exigem uma releitura para serem melhor apreendidas; frases que reverberam ainda depois de terem sido lidas. Com certeza é um livro que não termina quando acaba.
"Este livro é um só estado de alma, analisado de todos os lados, percorrido em todas as direções."
Árdua é a tarefa de definir este livro. Não é um livro comum ou para qualquer um; sobretudo não é um livro para se ler como simples entretenimento. É preciso ser leitura exclusiva na medida em que esta é uma obra exigente, ora no que se refere a parte técnica (narrativa, gramática, modelo estilístico, estrutura de frases), ora pelo frequente profundo conteúdo. (Penso inclusive que talvez fiz mal em ler o livro da forma que li, isto é, de cabo a rabo; talvez o mais recomendável seria ler um fragmento por dia ou algo assim.)
Este livro é de tal maneira que as palavras de Clarice que precedem sua obra A paixão segundo G H, mostram-se também bastante adequadas aqui: "Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada."
As três citações do Livro do desassossego que coloquei neste texto foram tentativas de dizer, com as próprias palavras do autor, como o livro é. Porém, creio que o somente a leitura da obra pode lhe satisfazer. Leia então, e com isso fará um grande favor a si mesmo(a).
"E porque este livro é absurdo, eu o amo; porque é inútil, eu o quero dar; e porque de nada serve querer to dar, eu to dou..."