spoiler visualizarAndreas Chamorro 28/05/2020
Cotejo Orwelliano
“Os melhores livros, compreendeu, são aqueles que lhe dizem o que você já sabe.”* Esta reflexão feita por Winston é o momento em que Orwell, resume a experiência da leitura de seu texto: claustrofóbica, modorrenta; impossível ler este livro sob a copa de uma árvore em seu parque favorito, fitando criancinhas de patins, sendo que, no momento em que olharmos os edifícios decorado por centenas de janelinhas o romance mil novecentos e oitenta e quatro surgirá como um espectro, puxando nossos pés como o defunto que somos.
Antes de chegar ao ponto central deste texto, sugiro passearmos pela margem; devemos obter a medida da curvatura que nos puxa funil abaixo, efeito que nos acomete já na leitura do segundo parágrafo. A extremidade, a borda deste funil é a comparação, o paralelo (no caso não admitiríamos ponderação, a realidade distópica do romance não a suporta), nosso hábito enquanto leitores de posicionarmos ficção e realidade e cotejá-las durante o percurso literário.
Traçar paralelos entre o que vemos no dia-a-dia e o que vemos num texto pode ser sufocante, como uma dose fatal de verossimilhança; tal é a experiência ao entrarmos em contato com o mundo pós-totalitário de 1984. Arrisco mais: o livro de Orwell ganha força conforme o presente de seu leitor, seu incômodo cresce a cada geração que o lê, cada vez mais descobrimos quanto o comunismo soviético foi desastroso, regime este “elucubrado” por Orwell, na época da publicação do romance (No ano de 1949, o ucraniano Grigóri Kudla e o bielorrusso Ivan Dutchetchkin fugiam de suas condições de prisioneiro numa terra stalinista.**). Esta é a curva do funil. Logo quando nos deparamos com a estranhíssima palavra teletela no primeiro parágrafo, somos flagrados com seus “olhos”, e isso perdura, até o fim na narrativa e principalmente ao pausarmos a leitura, levantarmos a cabeça e checarmos uma notificação no telefone.
Fomos tragados pelo funil, e agora? O que tem 1984 a nos oferecer? Bem, sugiro darmos alguns passos para trás e analisar panoramicamente nossa Terra dos Papagaios. Veem caos, não? Eu vejo além, obtenho coisas interessantes nas nuances deste caos. Desde a Revolução Francesa vemos um aperfeiçoamento dos produtos gerados desta. A literatura feita desde então nos trouxe boas ideias de como tomar cuidado com a mente humana. Orwell, neste livro transmite que seu sistema totalitário, porém utópico, realmente era algo que podia acontecer. Às vezes a dúvida é pior que o óbvio, caro Orwell.
Cotejando a ficção e a realidade deparei-me, de primeira, com os 300 do Brasil jogando dejetos nas fotos de Moro, Mandetta e outros “neo-comunistas” de um lado e Julia arremessando um exemplar do dicionário de nova fala no rosto de Goldstein, de outro. Num segundo momento com as teletelas sempre ligadas e adolescentes que quase nunca desligam o telefone. Ao longo do romance, vários outros paralelos foram sendo traçados, um mais medonho que o outro, até chegar ao crucial: a ortodoxia obtida através de lavagem mental.
O peso de ler uma obra como a de Orwell nos tempos de hoje torna-se aparente ao lembrarmos de terraplanistas extremos, políticos e religiosos insensatos que convivemos nos dias de hoje. Ao final do livro que Orwell tenta nos acordar beliscando nossos âmagos.
Nosso protagonista infausto Winston, demonstra, nas últimas páginas de sua história uma certa aversão à sua consciência criminosa. Toda a rebeldia antes tão esperançosa, agora tem de ser repelida. É exatamente este o efeito que ocorre num debate hoje, se feito entre um “globalista” e um “terraplanista”, este ao ser refutado chega a expor argumentos cientificamente impossíveis para comprovar sua ideologia.
E a grande culpa vai para a teletela: Orwell se vivo hoje, fosse comparar sua invenção com a verdadeira teletela do século XXI, tiraria o chapéu. Hoje as teletelas não ficam o tempo todo ligados porque nos obrigam, mas sim porque seus usuários não as deixam em paz; em nossa realidade somos nós que queremos que elas falem cada vez mais (siri ou bixby); não perdemos a privacidade porque elas não tiram seus olhos de nós, e sim porque muitos usuários mesmos se satisfazem com a exposição. E o mais assustador não é isso.
As teletelas em 1984 existem também para divulgar as informações sobre o Partido, sobre as conquistas do Socing. Os celulares, especialmente as redes sociais, foram os grandes responsáveis por eleger um presidente, e, ao que tudo indica através de mentiras; sim, exatamente como os governantes do Socing fazem. Muitos podem exclamar: “Mas Andreas, nisso eu não caio.” Exato, mas vista a capa de “proleta” ortodoxo que vira esperança no candidato. A bolha em que este vive tem seus costumes e imaginário latentes. As bolhas sociais de hoje são pequenos “Grandes irmãos”; a profissão da vez é a de influenciador.
Tal é a experiencia literária que teremos ao ler 1984 no século das redes sociais. Como seria prazeroso que não condissesse com a realidade. Então devemos nos desesperar ao percebermos que a distopia idealizada em 1984 está ocorrendo realmente? Não, definitivamente ainda não. Se ainda posso escrever e publicar este texto sobre este livro significa que o Socing permanece ficção. Um primeiro passo é perceber de onde veio tal reflexão: de um livro. Para Borges a eternidade do homem é o que Homero começou. O romance incômodo de Orwell é um tira-cabrestos necessário, e uma das maiores provas do poder da literatura.
* George Orwell, 1984, Edição Especial, Companhia das Letras. 2019, p.251.
** Aleksandr Soljenítsyn, Arquipélago Gulag, Carambaia. 2019.