spoiler visualizarPicolé de Atum 27/01/2024
Gente Pobre, o primeiro romance de Dostoiévski, contempla duas personagens principais: o Makar e a Varvara. Ele trabalha como funcionário público, ela como costureira, e os sentimentos que possuem um pelo outro são sufocados pelas dificuldades da pobreza.
Por conta da escrita epistolar, Dostoiévski pode prescindir de um narrador. Todos os acontecimentos são narrados pelas próprias personagens, através das cartas que escrevem, o que permite um acesso mais direto à linguagem (e, consequentemente, à visão de mundo) dos dois. Um narrador em terceira pessoa falaria _sobre_ as personagens, mas aqui elas falam por elas mesmas. E quem teme mais a fala dos outros sobre si do que o próprio Makar?
Se Makar não gosta de viver na pobreza, isso tem menos a ver com a dificuldade material do que com a vergonha decorrente dela. Conforme a confissão da personagem, as roupas que não consegue comprar não seriam para ele mesmo, mas para os outros - isto é, para os olhares julgadores dos outros, que riem dele por se vestir de maneira ridícula. De todo o resto, Makar consegue abdicar para gastar o seu dinheiro com presentes para Varvara. A sua restrição é marcada apenas pela vergonha.
Aqueles presentes, portanto, são uma forma de Makar se rebelar contra a degradação da pobreza e afirmar a si mesmo como um homem digno, capaz de proporcionar conforto à pessoa amada. É o seu modo de buscar o final feliz que, para ele, faltou no conto "O Capote", de Nikolai Gógol, enviado a ele por Varvara. Na leitura deste, Makar se revolta contra o retrato da personagem principal, a quem não foi oferecida qualquer escapatória do seu destino miserável enquanto funcionário público. Quem é, afinal, aquele escritor para apontar o dedo ao pobre e dizer: "miserável"? Isso é algo que Makar não pode aceitar, e por isso envia presentes. (E, por isso, é o dono de sua própria palavra no romance, dispensando o julgamento de um narrador em terceira pessoa sobre quem ele é.)
Mas Varvara não aceita passivamente os seus desejos, expressando em suas cartas uma culpa pelos presentes recebidos enquanto Makar enfrenta dificuldades. Nessas cartas, ela o repreende por não pensar nele mesmo e, implicitamente, expressa um desejo por maior autonomia e igualdade hierárquica na relação. Encontramos aí um retrato de feminilidade que encontra na mulher uma vontade de agência, embora esta não ultrapasse o nível de uma reclamação resignada, tendo em vista a naturalização dos papéis de gênero na sociedade russa do século XIX.
Essa vontade, ao final do romance, culmina na resolução trágica, na medida em que ela busca uma linha de fuga que é incapaz de atingir um agenciamento revolucionário. Para Varvara, a única saída da pobreza e que tira o peso das costas de Makar é o casamento com um homem rico. Para Makar, essa atitude é aceita com resignação, pois seria a concretização do seu desejo altruísta pelo bem-estar da amada, culminando em um autossacrifício. Mas esse desfecho, embora seja a expressão máxima das vontades "elevadas" das personagens (isto é, dos desejos de afirmarem a própria dignidade), leva o amor entre as duas à destruição. Em Gente Pobre, a derrota do romance é o resultado da vergonha fazendo as personagens tenderem ao limite. Cada vez mais distantes da dignidade, arrastadas pelas condições sociais, aquela só pode ser cobiçada às custas da destruição de si mesmas.