Guilherme 05/04/2015
Breves comentários à distopia de Karin Boye
Kalocaína foi escrito por Karin Boye, poeta e romancista sueca. Vítima de depressão, tragicamente suicidou-se em 1941, aos 40 anos, deixando, como derradeiro, este romance que talvez seja sua obra mais famosa. O livro foi publicado no ano anterior à sua morte, em 1940.
O romance é sobre Leo Kall, cientista da Cidade Química nº 4* que desenvolve a droga da verdade, denominada como Kalocaína. Como se pode deduzir, o paciente que recebe doses da droga, ao ser interrogado, não pode mentir e revela toda sua culpa. No chamado “Estado Mundial”(que não tem local e época definidos durante a história), a droga se torna essencial para o combate dos comportamentos associais e à investigação de certo grupo organizado avesso ao Estado. Este tem ainda como sombra um Estado Vizinho, com quem vive constante guerra.
A história é contada em primeira pessoa, através do protagonista Leo Kall. Trata-se, portanto, de uma narrativa subjetiva. Todo contexto, ambiente e os outros personagens é passado para nós pela visão do próprio Kall.
Assim, é através de sua atividade como cientista e cidadão-soldado que conseguimos conhecer as características do Estado Mundial em que ele vive. Vê-se a sistemática de controle social e administrativo em prol da filosofia estatal, em que o Estado é dividido por Cidades funcionais - como a Química em que Kall vive - e o governo em Ministérios que regem e manipulam determinados setores da administração do Estado - como o da Propaganda, o da Saúde...; vê-se o modelo de comunidade e corpo social que vive em função do Estado, quando os indivíduos ora são cidadãos, ora soldados patrulheiros; a retirada dos filhos da guarda dos pais para o aprendizado civil-militar, como é feito com todas as famílias, inclusive com a de Kall; a constante vigilância militar, por meio dos aparelhos nas residências que são verdadeiros olhos... Entre outros elementos, conhecemos, nesta distopia, um Estado Totalitário, que governa com um fim em si mesmo, onde os indivíduos vivem todo momento pela comunidade, vidas voltadas puramente à continuidade daquela estrutura, àquele status quo, com a sombra da vigilância sobre o comportamento desviante. Não existem classes sociais definidas, mas também não existe liberdade individual. É um domínio do Estado sobre o cidadão e com a Kalocaína se estenderá também aos seus pensamentos.
Ao mesmo tempo acompanhamos toda a angústia de Leo Kall. O personagem é o grande inventor da Kalocaína, que será capaz de revelar e conter a subversão, mas o próprio cientista convive no âmago com sentimento contrário à filosófia de seu Estado. Trata-se do confronto psicológico do personagem, que não consegue aceitar sua condição associal.
Todavia, considero as partes mais atraentes do livro os experimentos com a Kalocaína. Isto porque a droga faz com que os interrogados expressem toda a verdade que escondem. É justamente em seu discurso que podemos notar como cada cidadão se encontra oprimido naquela sociedade. Bem da verdade, a Kalocaína me pareceu mais uma libertação que delação, um estímulo ao desabafo daqueles indivíduos. Talvez tenha sido a primeira e única oportunidade de aqueles pacientes serem sinceros perante não somente à sociedade, mas a eles mesmos. Algo que o último interrogado talvez tenha compreendido ("– Vocês me ouviram..."), mas que Leo Kall não.
É um bom livro. O prefácio acostado à edição e-book que li é verdadeiro em cogitar que 1984, talvez a obra máxima do gênero, escrita por Orwell cerca de 10 anos depois, teve certa inspiração neste livro de Boye. O início de Kalocaína, com o protagonista redigindo sua história, é muito parecido às primeiras reflexões de Winston quando tencionava escrever seu diário. Os próprios personagens na história têm lá suas semelhanças. Talvez 1984 seja até muito mais semelhante à Kalocaína do que à Admirável Mundo Novo, a quem sempre é comparado.
Séries como Jogos Vorazes e Divergente, têm trazido o gênero distópico à moda no meio literário, recentemente, embora com um teor mais jovem, onde há um foco mais para a ação e aventura. Porém, é importante que se resgate sempre as obras clássicas do gênero como 1984 e Admirável Mundo Novo (1931) de Aldous Huxley, ou até as menos conhecidas como a pioneira Nós (1924) de Eugéne Zamiatine e Kalocaína. Tais obras são demais importantes por suas críticas éticas, morais e político-sociais. Ficções que nos alertam a necessidade de uma consciência e reflexão sobre a realidade que vivemos para que talvez possamos criar um mundo novo.
* Algumas sinopses que vi na internet, inclusive a que consta no Skoob à época desta resenha, informam que o protagonista vive na Cidade Química nº 5. Todavia, o e-book que li, traduzido do sueco por Janer Cristaldo, diz que Leo Kall vive na Cidade Química nº 4.