Ingrid | @litmanifesta 29/09/2023
Um canto à liberdade: Eu, Tibuba de Maryse Condé
Abena deu à luz em um novo mundo, obscuro. A semente do branco foi-lhe introduzida após uma violação a bordo do Christ the King. As ondas do mar deslizavam o navio negreiro rumo à um território desconhecido. As palavras proferidas ao seu redor não lhe penetravam a mente, absorvida pelo medo e pela dor. As correntes atadas ao seu corpo simbolizavam em aço o fim de sua liberdade. Foi dessa violência que nasceu Tituba.
O mar, a escravidão e a América: três elementos que se entrelaçam em um emaranhado de dor. Conforme crescia, pareceu resignar-se a ela. Perdera a mãe; enforcada. Seu crime foi defender-se do senhorio, cujas calças abaixo dos joelhos, sexo a mostra, não deixavam dúvidas sobre suas intenções. Foi enforcada por outros escravos. Algum tempo depois, Yao, pai adotivo de Tituba, suicidou-se, engolindo a própria língua. Por uma sorte do destino, ou quem sabe, pela disposição dos espíritos, a menina órfã encontrou amor e cuidado nos braços de Man Yaya, que ensinou-lhe tudo sobre as qualidades das ervas. Aprendeu sobre quais misturas que poderiam curar, resgatar os ânimos, fechar as feridas abertas pelos chicotes, que pareciam nunca descansar de sua tarefa.
Aos 14 anos, viu Man Yaya morrer. Ou melhor, assistiu sua passagem deste plano para o outro. Ao deixar a vida terrena, Man Yaya assumiu a forma de espírito, juntando-se a Abena e Yao. Quando sua filha apaixona-se por um homem, os espíritos a advertem, dizendo-lhe que aquele homem seria sua perdição.
Entretanto, ela segue seu coração e renega sua liberdade. Casa-se com John. Muda-se para uma pequena cabana, construída por mãos calejadas do trabalho forçado, atrás da Casa-Grade. Os espíritos permaneciam dando advertências à Tituba, diziam-lhe que em breve ela atravessaria o mar.
Tituba assistiria à sinhá perecer em seu próprio mijo. A doença que lhe consumia o corpo e a alma foi um pedido de vingança aceito, ainda com resistência, pelos espíritos. Por vingança, antes de morrer, a dona das terras vende o casal para um homem de cenho franzido e olhos cinzentos como tempestade; a carranca acusava sua submissão à palavra sagrada, apontava à habilidade de detectar os pecadores e as bruxas, que deitavam-se com Satanás (um nome desconhecido por Tituba até então), profanando suas carnes depois de realizar loucuras através da magia.
Quando Tituba chega a Salem, não tarda a perceber que a atmosfera opressora era intensificada pela histeria coletiva da caça às bruxas. Mulheres eram julgadas, e ela assumiu os pecados que não cometera. Aliás, por toda sua vida, assumira os pecados que não cometera.
Trata-se de um livro que usa da ficção para realizar um resgate histórico, respondendo às indagações da personagem-narradora, que se pergunta como a história a apresentará e se a marcará apenas com o estigma da "negra escravizada praticante de vodu". Podemos dizer que essa perspectiva pesou sobre seus ombros até que o peso foi retirado a pancadas por Maryse Condé, que deu a ela um final justo, ainda que intensamente doloroso.
Cada página desse livro é uma recordação dos crimes e do genocídio contra os povos negros. Tituba é complexa, um ser humano carregado de falhas, é claro, que por muitas vezes parece aceitar seu destino. Entretanto, lhe foi reservada a oportunidade de libertar-se da resignação, imposta, é claro, pelos brancos. Tituba liberta-se, mesmo que na morte, e transforma-se em uma canção de liberdade, uma canção que acalma e acalenta os corações, mentes e corpos dos escravos feridos pelos chicotes ou pelas armas no decorrer de uma batalha pela libertação.
Tituba é tudo isso. Tituba é muito mais do que isso. Pergunto-me: quantas outras Titubas não existiram e caíram no esquecimento, ou pior, tiveram suas histórias transformadas em algo que nunca foram, em "uma negra escravizada praticante de vodu"?
Os séculos de escravidão ainda ressoam nos dias de hoje. Os navios negreiros tomaram a forma de viaturas, as armas ficaram mais sofisticadas. Entretanto, a canção de liberdade assume nova forma. Levantam-se bandeiras, grita-se pela liberdade, a promessa de nossas vidas. Tituba está viva, ainda mais viva, depois de ser eternizada em palavras. Palavras poéticas e duras como a vida. Que sorte a nossa poder ter em mãos um livro com tamanha potência. Que sorte a nossa.
Death is a porte whereby we
pass to joy;
Lyfe is a lake that drowneth
all in payne*
- John Harrington
(Poeta puritano do século XVI).
*A morte é um pórtico por onde nós / passamos à alegria;/ A vida é um lago que afoga/tudo em dor.
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