O peso do coração de um homem

O peso do coração de um homem Micheliny Verunschk


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O peso do coração de um homem





Logo no início deste livro, o narrador, um menino então sem nome, constata: “morar perto do fim do mundo é morar longe, perto de nada, numa terra sem país”. O impactante parágrafo de abertura determina os matizes que vão se espalhar da primeira à última palavra do romance. O pôr do sol e a poeira das estradas que a civilização tarda a percorrer têm cor de sangue num Brasil de feridas abertas, de instituições de fachada, verdadeira terra sem país.
Na trama, dois meninos são tirados à força da família por conta de uma antiga e misteriosa rivalidade, levada a cabo, como sói acontecer, de forma brutal e às margens da lei. Na casa de seus captores, são bem tratados e ganham pela primeira vez nomes próprios: Cristóvão, o narrador, Gonçalo, o caçula. É a memória dessas violências que vai converter o mais velho num assassino juvenil capturado pela polícia, apresentado no romance anterior da autora, Aqui, no coração do inferno.
Um mundo muito pobre de palavras e gestos, como o narrador o descreve — fazendo lembrar os grunhidos animais de Fabiano e Sinhá Vitória, de Vidas secas —, permite que as pessoas prescindam de nomes. O menino percebe, sem o saber, na linguagem a lâmina que retalha o corpo do mundo e condena ao isolamento elementos até então indistinguíveis: “como se as coisas indefinidas não pudessem ter existência de verdade”.
Nesse mundo, nomear talvez signifique justamente condenar. “Mãe era mãe. Corália era nome de morte”. Assim como fizeram com sua mãe, para ser capaz de se vingar Cristóvão precisa antes dar nome a assassina dos pais: Abutra.
É nesse ponto em que o peso do ato de nomear é flagrado que a literatura de Micheliny se dá a ver em toda a sua grandeza. A percepção do poder criador (e destruidor) da palavra, constitutiva de toda boa literatura, está presente na premiada trajetória da autora como poeta e prosadora. Essa consciência possibilita que, numa trama de vingança, repleta do suspense e da ação que fazem o leitor ansiar pela próxima página, descortinem-se também, sem sociologismos, as mazelas de um país que se urbanizou, mas nunca deixou de ser regido pelos costumes dos grotões mais violentos.
“O peso do coração de um homem não é diferente do peso do coração de qualquer animal”, conclui o menino, já hábil no catecismo da morte. Quem determina esse peso é a linguagem. E, no trabalho com a linguagem, é válida outra de suas descobertas no trato com as vítimas: “passar a faca tem outro tipo de exatidão”. É com essa exatidão que a autora dispõe as palavras nesse belo e poderoso romance.

Literatura Brasileira / Romance

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on 29/4/19


‘O peso do coração de um homem’ começa com ambos os pés e as mãos chafurdados em violência. Neste segundo volume, a narrativa de Laura dá espaço à voz do jovem canibal preso em ‘Aqui, no coração do inferno’ e se transforma num longo calvário quase-edipiano de vinganças e desumanização. Marcada por uma dicção em que faltam palavras, nomes e gestos, a história dos dois meninos (chamados Menino e Menino) arrancados dos pais brutalmente assassinados, faz eco a grandes obras do romance regi... leia mais

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Paula
editou em:
31/07/2017 09:00:31

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