Tiago Doreia 01/06/2021Merecia 6 estrelas de classificação!!Foi com certeza a resenha mais difícil de se escrever até hoje, dada a complexidade da obra, mas que valeu muito a pena ser lida, se tornando um dos melhores livros que tive o prazer de apreciar.
Os personagens são altamente complexos, multifacetados, com camadas superficiais e profundas, assim como os seres humanos na vida real. Ninguém é totalmente bom, da mesma forma como ninguém é totalmente mau, mas cada um age conforme seus preceitos, suas crenças e por que não seus interesses?!
O livro é tão minuciosamente pensado que até o nome do protagonista está ligado à sua trajetória, visto que raskol em russo significa cisão, divisão. E este é exatamente isso que vivemos durante todo o percurso da história que se desenrola.
Dentre as diversas reflexões que a obra aborda, uma das mais evidentes é a questão da possível justificativa de um crime em prol de algo positivo ?não ficaria apagada a mancha dum só crime, insignificante, com milhares de boas ações?? Seria possível pagar a conta de um ato mau, com centenas de atos positivos? Esse julgo é apresentado como uma maneira de justificar tal ação, que é visto como uma ferramenta que o permitiria galgar a montanha da vida.
Esse pensamento está altamente ligado ao artigo escrito pelo próprio Raskólnikov sobre pessoas extraordinárias, a exemplo de Napoleão ou Júlio César, a que lhes são dados o direito de cometer crimes sem que lhe sejam atribuídas punições, pois estes não estão sob os mesmos critérios morais que o resto da sociedade. Em alguns momentos do turbilhão de pensamentos do protagonista chega a cogitar ser uma dessas pessoas extraordinárias, mesmo que de modo semiconsciente.
A partir do momento em o ato divisional é executado, o personagem sofre o castigo autoimposto em sua consciência após o crime, então vem a expiação, a opressão, a solidão, a aversão a todos que o rodeiam e o definhamento que o abraça ao longo do restante da história. Esse desgaste é tão grande que se reflete fisicamente, em que Raskólnikov cai em estado febril e delirante em vários momentos. Podemos analisar, usando um caráter mais técnico, que houve, possivelmente, uma somatização de suas questões mentais.
As atitudes do protagonista são guiadas em dois níveis, no nível consciente, que se manifesta nas ações mais visíveis, como planejar o crime usando para isso uma balança moral em que mede o "custo benefício" desse ato. E também há as ações inconscientes, que se revelam principalmente nas atitudes de "arrependimento" do Raskólnikov, em que por vária vezes solta "dicas" sobre a autoria do crime, sem perceber ou sem entender o porquê disso, até que, no fim, resolve executar o ato final que é a rendição.
Há um outro ponto que pode ser explorado, que é um possível distúrbio psicológico do protagonista, baseado em todos os pensamentos, reflexões, e atos vividos por Raskólnikov. ?Às vezes, porém, não tem nada de hipocondríaco, mas é simplesmente frio e insensível até a desumanidade, palavra, como se nele se alternassem dois caracteres opostos. Às vezes é terrivelmente taciturno!?
Mas não só o protagonista possivelmente sofre de alguma patologia mental como alguns outros personagens, a exemplo de Catierina, a viúva.
?Perturbada; ora se preocupa, como uma criança, com que amanhã tudo esteja bastante bem, que haja o que comer e tudo... ora torce os braços, escarra sangue, chora, de repente começa a bater com a cabeça na parede feito uma desesperada.?
Há muito mais pra se falar sobre essa incrível obra, e como é impossível abordar tudo aqui, vale a pena citar pelo menos alguns pontos interessantes, como por exemplo a própria cidade de São Petersburgo, que é quase um personagem vivo: detalhada, claustrofóbica, febril, lúgubre, altamente dissonante e desigual socialmente. Essa obra merece ser estudada por décadas, em todos os âmbitos que ela aborda, seja filósofo, social, econômico, psicológico e assim por diante.
Outra personagem relevante na trama é a Sônia, cujo nome significa sabedoria, e ao longo da obra descobrimos o porquê, visto que essa se assemelha em muitos pontos com Maria Madalena, não só pelo fato de ter sido prostituta, mas por redimir disto, além de acompanhar Raskólnikov até o momento da sua pena, uma alusão à ida de Jesus ao calvário.
Existem uma lista enorme de easter eggs na obra, só pra citar alguns: Razumíkhin fazia alguns trabalhos como tradutor, a mesma profissão do próprio Dostoiévski no início da vida profissional. Os trabalhos forçados na Sibéria que Raskólnikov é obrigado a executar também foi uma experiência vivida pelo próprio Dostoiévski, depois de ser preso por participar de movimentos políticos radicais. A bíblia foi o único livro que o autor teve acesso durante os 4 anos de trabalhos forçados, assim como o personagem da obra.
Para finalizar, do contrário este texto seria mais análise literária que uma resenha, e não me sinto habilitado para escrever tal material, deixaria de deixar meus agradecimentos a Fiódor Dostoiévski, por presentear a humanidade com essa obra infinitamente rica, em diversos aspectos, mas não menos divertida e incrível. Peço aos que lerem essa resenha: se ainda não leram crime e castigo, por favor o façam o quão logo seja possível, garanto que não irão se arrepender.