Douglas MCT 14/08/2019
Desde já um dos maiores clássicos dos quadrinhos, ao lado de Watchmen, Maus e O Cavaleiro das Trevas
Não existe nada igual a essa graphic novel. Nada. Minha Coisa Favorita é Monstro é história em quadrinho. É literatura. É pintura clássica. É cinema e música e escultura. As 11 artes em uma só, num tributo formidável ao horror clássico, de alguém que conhece como pouco os monstros fantásticos (e os da vida real também), prestando ainda homenagens e referências para obras de arte famosas, as mitologias, as lendas locais, tratando de política e de História, de uma maneira natural, crua e cínica, mas sem abandonar a sensibilidade.
A história se passa em Chicago no final dos anos 60 e é narrada por Karen Reyes, uma menina de dez anos, fanática por histórias de terror, registrando tudo em um diário, feito com canetas esferográficas (na trama e na produção real do quadrinho, por Ferris). Cada folha tem linhas e buraquinhos típicos de um caderno mesmo. Se representando como um “lobismoça”, a protagonista encontra paralelos entre vizinhos e outras pessoas com os monstros clássicos (por isso vemos versões da criatura de Frankenstein, do Drácula, do Monstro da Lagoa Negra, de Mr. Hyde, entre tantos outros), que a fascinam. Por isso, ela lida tudo com bastante naturalidade. Ao contrário das verdadeiras abominações que ela acaba presenciando na vida real, como o assassinato de sua vizinha, o que serve de gatilho para o começo e desenvolvimento do enredo, que ainda aborda relações abusivas (em todas suas vertentes), bullying, racismo e homossexualidade, tudo embalado em uma velha e boa história de mistério e crime, com a mais pura nata do terror clássico de monstros, sendo várias histórias em uma.
Emil Ferris é uma artista de mão cheia, sem igual. Além do roteiro atípico e bem escrito, ela entrega páginas espetaculares, sem jamais manter um padrão ou um template. Com uma arte repleta de hachuras e “defeitos”, ela mostra personagens com visuais diferentes, tal qual são os humanos na vida real. Quando você acha que ela pode ter cometido qualquer erro no traço, logo ela mostra uma firmeza na página seguinte, com um retrato fiel e realista de uma pessoa, ou de um afresco famoso, retratado formidavelmente por aqui. E nessa inconstância proposital, Ferris nos leva pelo colosso que é este primeiro volume de seu quadrinho. As páginas são pequenas obras-primas, que não devem ser passadas com velocidade, merecem atenção e uma pausa antes da próxima folheada. Cada página e desenho trás uma surpresa ou informação escondida, seja crucial ou curiosidade, nada passa batido no trabalho minucioso da autora – que inclusive guarda uma história tão impressionante quanto a que está narrando. Durante a produção desta graphic novel, Emil Ferris contraiu uma infecção do vírus do Nilo e ficou paralisada da cintura para baixo, perdendo a fala e os movimentos do braço direito por um longo período. Assim, foram cinco anos até que ela concluísse as mais de 400 páginas do gibi.
Sagaz em sua narrativa, a autora constrói a história principal e as de escanteio sem pressa e com um desenvolvimento preciso, levando o leitor próximo de revelar ou desvendar algo, para logo em seguida mudar o rumo e foco, em outro personagem, em outro contexto. Tudo se agrega ao fio principal, no sentido conceitual, sem gratuidade. Sabendo deixar as pontas soltas, Ferris intriga o público justamente quando escolhe o momento certo para puxá-las de novo, assim, nos levando junto até onde quer chegar, em um enredo improvável e nada clichê, subvertendo vários gêneros por onde caminha, enquanto nos encanta e nos assombra, com a realidade de alguns naquelas páginas, que certamente foi a realidade de muitos naquele período. Outro ponto positivo da HQ, está na autora usar de uma criança como protagonista, afinal, mesmo que esperta e com conhecimentos culturais que a favoreçam para desenvolver melhor os rumos da coisa, ela ainda é carregada de inocência e ingenuidade, que gradualmente vão sendo corrompidos com histórias de imigrantes judeus fugindo da Alemanha, de mortes próximas e de um mistério complicadíssimo envolvendo seu irmão, outra grande figura da trama.
A edição da Quadrinhos na Cia é suntuosa e respeita o material original em toda sua proposta, com um trabalho meticuloso de Américo Freiria no letreiramento, que recompôs tudo que Ferris fez, na adaptação dos textos para o português.
Esqueça os rótulos e as modinhas do momento. Minha Coisa Favorita é Monstro é um dos maiores quadrinhos de todos os tempos e vai te levar para uma história inesquecível. Quando terminar a leitura, você não será mais o mesmo.