Stella F.. 20/12/2021
O que está por trás da cor da pele
O Avesso da Pele – Jefferson Tenório – Companhia das Letras – 2020
Pedro entra no apartamento do seu pai, que acabou de falecer e a partir de seus objetos começa a tentar traçar a trajetória de seu pai, que chama de você e depois descobrimos que se chamava Henrique. O pai era professor e teve ao longo da vida muitas decepções e sabia que tinha sido só mais um, mas nunca desistiu de sua missão. Sofreu muito com o racismo, o primeiro evento dando-se aos 14 anos e teve uma relação bastante conturbada com Martha, mãe de Pedro e após muitas idas e vindas, saiu de casa deixando seu filho pequeno, assim como seu próprio pai havia feito, saindo de casa quando Henrique era pequeno. E por isso, Henrique ao sair de casa sente uma culpa enorme. Está repetindo os atos do pai.
“e talvez, além da culpa, o que te impedisse de sair de vez fosse a sua própria relação com seu pai, que também fora embora quando você tinha menos de um ano. Você não queria repetir a história. Não queria que eu entrasse para as estatísticas de filhos criados sem pai.” (posição 1327)
Pedro vai narrar sua própria vida em primeira pessoa. Falar do seu nascimento, da descoberta do racismo, e da importância do Avesso da Pele, das namoradas e da faculdade de arquitetura que entrou pelo sistema de cotas. O avesso da pele seria o que não aparece como atributo físico: suas ideias, pensamentos e conquistas pessoais.
“No entanto, agora eu sei que você estava me preparando. Você sempre dizia que os negros tinham de lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o que nos restava. É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantém vivos.” (posição 609)
Ao mesmo tempo vai falar da mãe Martha, uma mulher sofrida que perdeu os pais cedo e foi adotada. Tinha irmãos que foram adotados por uma tia, mas ela era a mais velha e foi adotada por Madalena, que já tinha uma filha, Flora. Martha vai sofrer com o racismo quando adolescente, quando seu corpo se desenvolve e começa a receber “elogios e cantadas” na praia, mas quem primeiro a questionou sobre a cor da pele mais escura foi Flora, que assim como sua mãe, era branca. Martha nunca tinha pensado no assunto. Depois casa-se com Vítor que se torna com o tempo violento e ela foge. Mais tarde vai conhecer Henrique e vai tentar resolver sua relação conturbada com ele, tendo um filho. Mas ela possui um vazio que nem mesmo um filho irá preencher.
“Sua mãe estava morta e as lembranças dela a atacavam quase todos os dias, a conta-gotas., como pequenas marteladas no coração. Lembranças que a magoavam profundamente. Essa falta será uma barreira intransponível em sua vida. Pois minha mãe irá crescer e dentro dela um poço irá nascer. E, no fundo dele, a única coisa que realmente a incomodará para sempre: a falta. A falta será a companheira.” (posição 399)
No primeiro capítulo tive uma certa dificuldade e tive que relê-lo, mas fui me familiarizando com a escrita e a leitura fluiu e foi maravilhosa.
O autor traça de maneira brilhante a história “inventada” dos pais de Pedro abordando com clareza o que é ser negro, pontuando o racismo, o racismo estrutural, o racismo por gênero, sem ser esse o mote e sim a relação entre as pessoas e seus afetos, mostrando outros assuntos muito importantes como violência policial, abordagens preconceituosas, educação, decadência do ensino no Brasil e a importância da cultura atrelada a isso tudo: livros, cinema e música. E vai nos dar uma aula sobre como os livros podem ser um tipo de salvação, usando o autor Dostoiévski, em Crime e Castigo, como exemplo para chamar a atenção dos alunos e ser respeitado.
Livro excelente! Merecedor do Prêmio Jabuti.