Maria Gabriela 01/03/2024
Como profetizou o sábio Charlie Brown Jr., só os loucos sabem
"Criança nem pensar, acabaria minha naturalidade, me obrigaria a ser outra pessoa."
"A pediatra", de Andréa del Fuego, é uma obra banhada no puro ácido do humor mórbido de uma mulher que analisa todas as características do mundo e dos seres humanos, ergue o nariz e proclama: "vocês são inferiores, e eu, a melhor. Suas existências e preocupações são meras perdas do meu precioso tempo". A autora soube como guiar o leitor à rotina imutável — e quase tediosa — de sua protagonista, Cecília, uma pediatra atípica: uma mulher sem espírito maternal, que detém pouco apreço por crianças e uma notável ausência de paciência para com os pais e mães preocupados e quase paranoicos, com as babás que substituem as figuras maternas, com os profissionais que glorificam o parto e repudiam a medicina, com o sentimento estranho de taxar a maternidade como algo 100% belo, paradisíaco, indolor e gratificante em todos os âmbitos da vida da mulher; com as mulheres desesperadas por homens com o rótulo "Pai do Ano", e com os homens sedentos por mulheres jovens e mais interessantes que suas esposas.
Em suma, Andréa nos apresenta uma protagonista estranha e atípica, a qual possui um rancor confuso com o mundo ao seu redor, mas que ainda consegue ser insuportável para o próprio leitor com suas atitudes rotineiras e ar superior. Cecília, desde sua introdução, sempre deixou evidente que ela é mais um número na estatística de "profissionais que seguem (à força) a carreira dos pais". Ela não demonstra apreço pela profissão, embora ame o conceito da medicina e dos status de ser médica; possui um consultório bem sucedido e é uma das melhores neonatologistas e pediatras de São Paulo — o que é irônico se lembrarmos que ela DETESTA crianças; ela "prefere" a pediatria e a neonatologia, embora opte por se manter em exames de rotinas e receitas de remédios, tudo para não permanecer por mais de 10 minutos na sala com os pais e seus filhos.
Uma protagonista atípica do que estou acostumada. Cecília é uma personagem interessante, mas ainda consegue ser insuportável. Ela é mulher chata, com um ar esnobe e superior por sempre proclamar em todos os momentos do livro que detesta crianças. Entendemos na primeira vez que você falou, querida. Ela é comicamente rasa, embora seja a única personagem com desenvolvimento tolerável — por mais que acompanhemos o seu ponto de vista, Cecília consegue tirar a paciência de qualquer um quando toma por verdade qualquer analogia inverídica e completamente deturpada das fanfics que produz em parceria com as vozes de sua cabeça.
Aliás, a rotina de Cecília é pouco interessante de se acompanhar. É uma rotina orgânica e estranhamente monótona: acordar, tomar café da manhã, se arrumar, ir para o trabalho, sair para o almoço, voltar para o trabalho, voltar para casa, dormir e repetir tudo de novo no dia seguinte. Não é muito interessante, do meu ponto de vista. Ganha um rumo mais "frenético" quando um novo neonatologista e pediatra mais humanista aparece e começa a "roubar" seus pacientes. Cecília não se consola ao saber que esse homem, que prefere partos domiciliares a supervisão "claustrofóbica" dos hospitais, está usurpando a sua fama e sua principal empregadora. É nesse momento que ela se empenha em realizar uma investigação, que não é muito bem construída.
É claro que Cecília não irá incorporar o espírito de Sherlock Holmes ou Hercule Poirot e sairá São Paulo afora, em busca de pistas mirabolantes para posteriormente apresentar à polícia — ou ao Comitê de Medicina — e dizer "prendam este homem!". Torna-se maçante, pois o leitor espera respostas concretas para as perguntas formuladas pela protagonista — porque as parturientes estão tão interessadas em partos domiciliares? Porque as mulheres escolhem o mundo da maternidade? O que há de tão chamativo na maternidade? Elas amam os seus filhos ou apenas querem mostrá-los no Instagram em troca de curtidas de completos desconhecidos? —, mas acaba recebendo um mero "depende, vai de pessoa para pessoa". Frustrante.
Os personagens secundários são rasos. Praticamente desinteressantes. A protagonista não desenvolve suas relações com os demais personagens, por isso não o vemos mais do que seus rótulos. Deise, a empregada doméstica grávida e com supostos problemas de alcoolismo. Celso, o típico homem casado com duas famílias. Robson, o segurança da pizzaria. Maria Amélia, a médica famosa. A única profundidade que temos são as fofocas que chegam aos ouvidos de Cecília, mas apenas isso. Um pouco decepcionante, mas "compreensível" se levarmos em conta que o foco do livro são as vivências e os pensamentos absurdos da protagonista.
A relação que a estranha pediatra desenvolve com Bruninho fora uma reviravolta. Cecília, uma profissional de pediatria que tem pouco apreço por crianças, amando e adorando uma? A mesma Cecília, que desde a primeira página do enredo estava jurando aos quatro ventos que jamais se "renderia" à maternidade? A mesma protagonista que priorizava seu corpo desejado por seu amor e repudiava o que a gravidez faz com os corpos femininos? Embora a sinopse já deixe claro que ela irá se "render ao instinto materno", é surreal ver como toda a sua personalidade se transforma para agradar e chamar a atenção da criança. É nítido ver como ela é praticamente obcecada por Bruno, a ponto de alucinar que ele é seu filho biológico e que, portanto, deve protegê-lo de todo o mundo, inclusive de seus pais. O final em aberto passa bem essa sensação de que a loucura de Cecília é tanto que ela faria qualquer coisa para ter essa criança como seu filho.
A escrita de Andréa del Fuego é bem diferente do que estou acostumada. São capítulos curtos, mas com escrita simples e direta. Não há descrições maçantes de cenários, mas a ambientação das paisagens do livro é repassada discretamente ao leitor — basta apenas ficar atento às reações e alucinações de Cecília. Não há uma divisão típica de narração e falas de personagens, o que embaralhou minha concentração e me fez voltar para reler o mesmo parágrafo algumas vezes, para compreender o que era narração de Cecília e o que eram falas de personagens secundários. É uma escrita mais clínica e técnica, o que estranhamente coincide com a personalidade de nossa protagonista.
É uma obra com acertos e erros. Tem seus momentos únicos, assim como tem seus defeitos. Foi uma leitura que oscilou entre "nossa, que chatice" e "Pai Amado, a Cecília é a Presidente da Loucolância e padroeira dos fanfiqueiros brasileiros". Não classifico como a leitura que indicaria primeiro, mas com certeza recomendaria como segunda opção.