Ro 21/04/2023
Não é do calcanhar que Aquiles gosta
Talvez nunca tenhamos superado o período neoclassicista e estejamos, aqui, nos iludindo com uma falácia pós-moderna e tecnológica. Porém, se somos nós o resultado do que no passado foram os outros, faz sentido que nos mantenhamos enamorados pelos grandes poemas épicos e as comoções que estes ainda nos causam. E por essa predileção pelo passado glorioso, narrativas como "O Silêncio das mulheres", "A canção de Aquiles" e "Circe" (sendo as duas últimas obras da autora Madeline Miller), nos tocam, e nos seduzem tanto. Como resultado da pós-modernidade, estamos anacronicamente, e, o tempo todo, tentando preencher lacunas de um passado que não conseguimos modificar. Contudo, eis, então, a literatura, buscando remendar essa colcha de retalhos em um retorno ao que não somos e nunca seremos capazes de modificar.
Em "O silêncio das mulheres", Pat Barker nos apresenta uma narrativa majoritariamente em primeira pessoa, utilizando-se do fluxo de consciência para recriar o que seria a percepção de Briseida perdendo tudo que era e possuía, ao ter sua terra invadida e seu corpo escravizado por Aquiles.
Ao nos depararmos com o poema épico de Homero, temos a tendência de focar apenas na narrativa heroica e na força dos guerreiros que ali atuam. A posição de Helena, como pivô do conflito também não passa despercebida, mas ninguém se questiona sobre aquelas que foram consideradas espólios de guerra, desumanizadas, bestializadas e transformadas em objetos a servirem os seus novos donos. Que é justamente onde Barker opta por construir o seu texto.
Gosto quando autores contemporâneos propõem esse tipo de narrativa, não pela necessidade de preenchimento de lacunas com anacronismos, mas por exercício da criatividade humana e pelo desejo de mudança que essas narrativas carregam. Acho fabuloso como podemos sempre recriar e potencializar qualquer que seja a narrativa.
Por fim, indico essa leitura para pessoas que, assim como eu, gostam do mundo grego e veem em narrativas como a "Ilíada" e a "Odisseia" espaços de deleite e prazer da criatividade humana. Mas, de antemão, aviso, não busque aqui nesta obra o purismo clássico da narrativa original. Lembre-se de que se trata de uma releitura anacrônica que não se dedica e sobrepor o texto no qual se inspira.