Ruh Dias (Perplexidade e Silêncio) 20/05/2022
Já li
"Indígenas de Férias", publicado em 2020, narra um recorte da vida de Mimi e Bird enquanto eles viajam por Praga. Mimi e Bird estão casados há quase trinta anos e, desde que os filhos cresceram e saíra de casa, Mimi decidiu seguir a trilha de cartões postais que seu falecido tio mandou, antes de sumir. O tio Leroy levou consigo uma bolsa Crow, uma tradição indígena onde objetos valiosos são coletados e guardados nesta bolsa, objetos estes que geralmente tem significado afetivo apenas para o portador da bolsa, como pedras de rio, penas, etc. Tanto Mimi quanto Bird tem descendências indígenas, daí o título do livro.
Quando Bird, o narrador do livro, é diagnosticado com uma doença reumatológica que afeta principalmente homens asiáticos e indígenas – em vez do câncer de pâncreas que todos supunham que ele deveria ter – sua esposa, Mimi, diz: “Veja […] ser indígena te trouxe sorte, afinal.” Bird tem uma personalidade melancólica, às vezes depressiva, e uma das partes mais interessantes da leitura são seus Demônios. Mimi nomeou todos eles. Há Eugene e Kitty – que representam autoaversão e catastrofização – e os gêmeos Didi e Desi – depressão e desespero. Esse conceito é simultaneamente engraçado e profundamente sério. Como Mimi diz ao marido: “Se você tivesse mais amigos, talvez não passasse tanto tempo com seus demônios”.
A personalidade de Bird é o oposto de Mimi, e o contexto da viagem coloca essa oposição à tona. Enquanto Bird sente saudades de casa e não tem vontade de conhecer nenhum ponto turístico, Mimi planeja cada minuto da viagem, é inquieta e agitada, não se incomoda com o desânimo do marido e até parece ignorá-lo (o desânimo, não o marido) de propósito, como se passasse uma mensagem que as reações do marido não devem ser levadas tão a sério assim.
Bird e Mimi conversam – grande parte do romance se desenvolve por meio do diálogo entre esse casal de meia-idade – mas, como Bird aponta, eles realmente não conversam. Em sua primeira noite na República Tcheca, Bird observa que tanto ele quanto sua esposa se esqueceram de trazer os romances que costumam ler nos restaurantes enquanto esperam a chegada das refeições. Bird pensa: “Agora estamos diante da possibilidade real de ter que conversar um com o outro”. E, no entanto, ao longo da refeição, isso nunca acontece.
A narrativa, muitas vezes, parece ir em direção ao nada e sem nenhuma conclusão. As seções frequentemente abrem com alguma variação do refrão, “Então estamos em Praga”. Há uma natureza repetitiva em grande parte da narrativa que destaca o ambiente imutável de Bird.
Esse relacionamento e dinâmica entre eles me lembrou muito as obras de Hemingway.
O enredo conta com alguns flashbacks, onde sabemos um pouco do passado de Bird. No início do livro, os flashbacks são para um passado recente e, no decorrer da narrativa, King traz um passado mais distante dele, como se para ajudar o leitor a entender como e porquê Bird tornou-se esse homem de meia-idade que conversa com seus demônios.
Eu fiquei entretida na leitura porque gostei de Bird. Achei interessante ler uma história narrada por alguém que sofre com males físicos, mentais e emocionais enquanto se esforça para curtir uma viagem pela Europa e se re-conectar à jornada da esposa. Bird não consegue nada disso, mas foi bom ver ele tentar, e ele acaba se tornando um protagonista carismático. É uma leitura que recomendo.
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