Cafeína 18/06/2023
Um estrangeiro no mundo
É um livro complicado de se dizer sobre o que, ou melhor, afinal, o que ele quer te dizer. Não se trata exatamente de algo mais próximo do que seria a representação da filosofia do autor através de uma história, inclusive muito pelo contrário. Na verdade é fácil a associação com o trabalho filosófico do Camus, mas eu acho que o livro é até mais do que a ilustração de uma parte desse trabalho.
E justamente com o que o livro quer dizer que a coisa começa a ganhar substância. Resumindo a brincadeira: a trama gira em torno de um sujeito apático e alheio a tudo, que sem justificativa alguma, puramente pelo acaso, intencionalmente mata alguém.
A começar pelo protagonista, que é o centro sobre o qual orbitam todas as questões, é quase como se não fosse a representação de uma pessoa, não se tenta um estudo psicológico ou o entendimento da natureza humana; o personagem é uma idéia, a representação de um estado de alheamento do mundo, uma melancolia niilista ou falta de empenho em seguir com a vida. Dessa forma, sobretudo na primeira metade, acompanhamos o cotidiano desse coitado, um marasmo sem empolgação no qual nada consegue interferir à sua inércia, o que é trazido à tona muito bem pela escrita pela qual ele opta por utilizar: anotações em primeira pessoas, sóbrias e objetivas, fora alguns poucos pontuais momentos, sempre enfatizando o desapego do sujeito, indiferente mesmo a morte da própria mãe. Apesar de um triunfo, essa escolha estética não entrega a mais palatável das narrativas, ou talvez sejam as voltas que a trama insiste em dar, atravessando o dia a dia do protagonista, dando profundidade a questão, para só então chegar ao ponto em que quer tratar; em outras palavras, não consegui me deixar levar o suficiente pela narrativa, a ponto de desejar que o ponto mais importante chegasse de uma vez. Ainda sobre a narrativa, é interessante a atenção que ele dá na criação de alguns simbolismos, o que vão dando ainda alguns planos para localizar a discussão, como a relação com a religião, ou ainda, qualquer ideologia; mas é claro que no campo do subtexto, nenhum brilha mais do que a metonímia que envolve a presença do sol, onipresente e inabalável, uma representação profunda da relação problemática entre o homem e o universo onde ele se encontra.
E com isso é, por fim, alcançado o objetivo que o autor parece ter tido com o livro, por as cartas na mesa e entregar as perguntas, isso porque ele não se empenha muito, ou pouco, em concluir algo a partir disso; é tanto quanto sobre explicitar algo que sempre esteve lá, um sentimento, uma angústia, a sensação de estar perdido, como necessitamos de criar tantas e tantas razões e justificativas para conseguir tomar a vida; ou talvez seja mais justamente sobre essas ilusões que criamos, sobre como usamos, nas palavras de outro autor, ?desse nosso falso poder secundário? para tentar definir e aplicar significado ao mundo e acabamos enclausurados pelas barreiras que nós mesmos criamos e que não estão além das nossas percepções. A história também põe em xeque a importância da experimentação, é quase como se a resposta para esse niilismo estivesse num entregar-se.
É um livro profundo, ainda que esta profundidade parece se encontrar mais fora do livro do que dentro, contudo, no que tange mais cruamente a construção da história, sobre como esses temas vão sendo levantados e como a coisa toda se decorre, o romance acaba, por vezes, deixando a desejar.