Margô 27/04/2020O sexo da mulher sob o critério do prazer masculino A narrativa se abre para o leitor com um “comunicado” do autor que diz que o livro que ali se apresenta é, na verdade, fruto de um original deixando com o porteiro do edifício e que, portanto, seu papel era apenas o de editor da obra. Semelhante coisa fez Daniel Defoe em Moll Flanders, entretanto, os dois autores têm distanciamento tanto em século, como no êxito ao narrar as histórias.
A obra não é de todo ruim, em alguns pontos chega a funcionar e entrega o que promete por ser uma obra ligada ao pecado da Luxúria. A narradora, a suposta verdadeira autora, vive uma vida sexualmente ativa, permeada de tabus como o relacionamento com o irmão e o tio e a pretensão que possuía de ter relações com o próprio pai. Vive um relacionamento livre com seu namorado/marido e não aceita determinadas amarras. E, já que falamos de uma obra ligada a um dos pecados capitais, trabalharemos com termos religiosos: a obra peca ao tentar definir o que é prazeroso para a mulher e o que é liberdade sexual feminina; como se nós mulheres precisássemos de uma autorização masculina para o prazer. Como se precisássemos da receita para o orgasmo e como se estivéssemos o tempo inteiro encenando performances sexuais para o parceiro.
Durante as cenas de sexo, que, como já disse, funcionam em alguns casos, nota-se que, por tratar-se de uma personagem feminina, os apelos são todos voltados para os possíveis leitores do gênero masculino e para o próprio autor: um homem. São cenas cheias de apelos visuais, com roteiros clichês e pouca, ou quase nenhuma, ligação com a realidade. Mas, por que estou ignorando a suspensão da crença ao apontar que as cenas são pouco ligadas à realidade? Porque, ao vermos uma personagem feminina que, quase nunca, tem direito à preliminares e, como Anastasia Steele, de Cinquenta Tons de Cinza, parece estar sempre totalmente lubrificada, estamos novamente nos colocando no lugar de mulheres que estão no sexo para servir ao prazer masculino e que não temos direito ao nosso próprio prazer.
Em suma, é uma narrativa problemática. O autor tentou seguir um caminho de transferir a responsabilização da narrativa para outrem, e de tornar-se personagem na própria história, mas, ao fazê-lo, não teve o cuidado de deslocar o seu olhar masculino ao espaço feminino, às possibilidades e particularidades ligadas ao gênero ao qual se dizia pertencer sua narradora. Não convence enquanto narrativa, não envolve, não cativa. É só mais um livro para despertar o visual e, como diria o finado Clube do Livro Erótico: “pra ler com uma mão só”.