Di3gao 13/11/2023
Enterre seus mortos junto de seus podres
Incidente em Antares me chamou muita atenção pela sua proposta incrível e diferente que parece até coisa de filme. Sejamos francos, quem não se interessaria por uma história onde um bando de mortos voltaram a vida e vão fofocar no coreto da cidade? Eu só não esperava que fosse me deparar com uma trama muito mais complexa e profunda do que isso.
O livro foi dividido em dois momentos: o primeiro se passa antes do incidente e o segundo algumas horas antes dele acontecer e suas consequências. Na primeira parte, o leitor é apresentado a história da pequena cidade fictícia de Antares, que é controlada por duas famílias diferentes e futuramente será palco do famoso incidente. O enredo construiu muito bem a história dessa cidade, estabeleceu quem são os moradores e a relação entre eles, manteve um ritmo consistente, foi muito interessante e traçou um paralelo político excepcional entre a política de Antares e a brasileira. Ele mostrou os períodos políticos brasileiros desde as missões jesuítas até o governo de Jango pelo ponto de vista da pequena cidade e serviu como um microcosmo do próprio Brasil, isto é, os problemas da cidade e as críticas realizadas acerca dela são uma referência ao próprio país. Por exemplo, Antares era uma cidade atrasada dominada por uma elite rural racista e conservadora que teme a mudança por não querer perder seus privilégios, um retrato perfeito do Brasil imperial e até mesmo atual.
Por sua vez, a segunda parte do livro larga o realismo que tornou crível a história de Antares para abraçar por completo a fantasia, sem perder sua essência. A trama gira em torno de sete mortos pressionando o governo da cidade para serem sepultados devidamente, pois os cemitérios foram fechados após uma greve operária estourar na cidade. A primeira parte dedicada totalmente à Antares foi justificada aqui, pois se fez muito necessário o leitor conhecer as origens e dinâmica da política da cidade, a população que a compõe e suas raizes racista e oligarca para compreender melhor as denúncias que os mortos fizerem e o porquê dos eventos terem se desenrolado de tal forma após o incidente.
Como dito anteriormente, o livro se utiliza de Antares para traçar um paralelo com o Brasil, mas ele também fez críticas gerais. Ao meu ver, cada morto representa um problema presente no Brasil e a volta a vida deles seria uma metáfora para os podres políticos que chegam à tona no conhecimento popular; e a relação do incidente com a greve não é coincidência, pois penso que esses dois acontecimentos possuem uma relação mútua, já que a greve acarretou nos "mortos" falarem e, só após as revelações feitas por eles, o povo vai tomar consciência de quem os governa e de seus direitos para a revolução poder acontecer. Visto isso, após o fim do discurso dos defuntos, o enxame de ratos que invadiu a praça, vindo da favela e de dentro das casas, representa a população marginalizada que vive de restos escondida nas sarjetas dentro da sociedade e, que ao tomarem consciência, se uniu para reinvidicar sua posição e inclusão social, sem contar também as pichações com mensagens políticas que passaram a aparecer nos muros.
Diante de todas essas qualidades ditas e da análise feita, é inegável que Erico Veríssimo tem uma mente brilhante e criativa, mas quero reforçar mais esse fato. A escrita do autor é muito fluída e envolvente, ele construiu toda a história com excelência, a narrativa é muito imersiva, ele transitou muito bem entre pontos de vista diferentes, a trama política e seus paralelos foram bem pensando e elaborados, toda a base histórica criada para a cidade é incrível, tem muitos diálogos filosóficos e as críticas feitas por meio do humor ácido e irônico dele tornam o livro tão especial. Além disso, Erico foi muito corajoso em lançar esse livro durante plena ditadura militar, pois ele crítica abertamente a tortura, o autoritarismo e a burguesia.
Portanto, Incidente em Antares tem uma história única e bem construída, uma leitura muito boa, um enredo com muitas camadas, críticas certeiras e é fundamental para compreender a atualidade por fazer o leitor se aprofundar e refletir sobre a história, a política e a sociedade brasileira. Aprendi mais sobre Era Vargas lendo esse livro do que em qualquer aula de história. Recomendo muito!!