Procyon 16/08/2022
O Evangelho Segundo Jesus Cristo ? Resenha
?O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo de sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo.?
Na literatura, a imitação, a contradição e a ironia dos textos pós-modernos muitas vezes transformam-se na paródia. Esse movimento, o pós-modernismo, posta-se quase sempre em direção a um passado, de forma alguma numa perspectiva nostálgica, mas sim crítica e contestadora. A ironia, então, passa ser um elemento retórico fundamental na medida em que, incorporado à paródia, instiga o leitor a questionar os pressupostos discursivos daquele passado. O escritor português José Saramago projetou em seus romances essa dimensão irônica sem tornar a narrativa ? ainda que escrachada ? uma causa de riso ridicularizador por parte do leitor.
De família humilde, José de Sousa Saramago nasceu em 16 de novembro de 1922 em Azinhaga, uma aldeia do Ribatejo, em Portugal. Tornara-se um escritor prolífico, sendo, portanto, autor de romances, contos, peças, crônicas e poemas. Referência na narrativa portuguesa contemporânea, Saramago carrega, em suas obras, críticas a diversos temas, como a religião cristã, o abuso de poder, a misoginia, e afins.
Dado o contexto no qual o declínio do prestígio à religião se manifesta nas criações artísticas e literárias, Saramago elabora sua crítica à religião cristã e à figura de Deus fazendo uso da ironia, escrevendo ?O Evangelho Segundo Jesus Cristo? (1991), paródia da Bíblia Sagrada que, configurada como romances de formação, recria o imaginário judaico-cristão com o intuito de ressignificá-lo, recontando, com uma visão moderna, a história dos textos sacros de maneira irônica e humanizada, o que resulta numa dessacralização das personagens do texto canônico. Tal dessacralização possui uma verve crítico-irônica como o elemento fundamental da paródia.
Talvez como uma maneira de afrontar o catolicismo arraigado na identidade lusitana ao longo de sua história, Saramago busca realizar uma análise semiológica dos ícones religiosos. Sustentando uma trama repleta de intensos debates retóricos, o autor, livre de dogmas, examina os fundamentos do cristianismo com uma desenvoltura e humor que soariam desrespeitosos não estivesse ele fascinado com a trajetória humana de Cristo.
Saramago reconstrói a vida de Cristo expondo a fragilidade do ser humano. Autor de múltiplos gêneros, o português parece preserva um historicismo fantástico, algo que se pode traduzir como uma narrativa de argumento/premissa fantástica, mas como um estilo que preserva seu realismo ? de praxe do modernismo.
?Não existe pontuação quando se fala. Falamos em um fluxo modulado por nossos pensamentos e emoções.?
Seu estilo oral parece captar uma certa coloquialidade, na medida em que remete ao ritmo da língua falada e preserva uma vivacidade da comunicação em cima da correção ortográfica da linguagem escrita. Todas os aspectos de uma linguagem oral predominantemente usada na oratória, na dialéctica, na retórica e que servem sobremaneira o seu estilo interventivo e persuasivo estão presentes no livro. Para tanto, também abole o uso tradicional da pontuação, de modo que os diálogos das personagens são inseridos nos próprios parágrafos que os antecedem, de forma que não existem travessões nos seus livros. Isso propicia uma forte sensação de fluxo de consciência, a ponto do leitor chegar a confundir-se se um certo diálogo foi real ou apenas um pensamento do narrador onisciente e satírico.
O texto enfatiza a valorização da humanidade em detrimento do divino, contestando o discurso religioso e rebaixando a figura do deus hebraico a um nível dessacralizado, a fim de que acusá-lo dos males do mundo, expondo todos os seus feitos contidos nas Escrituras e provocando um pensamento mais racional e crítico ao leitor. Dessa forma, o autor une uma postura política afiada à experimentação formal com o elemento fantástico. Existe uma reflexão maior da condição humana, captando personagens diante de situações de crise existencial, indivíduos em constante autorreflexão e embates socioculturais com o estado de coisas.
Na narrativa, Saramago desenvolve as características de suas personagens, salientando aquilo que tais possuem de realmente humano ou, em determinados momentos, apontando aspectos negativos no que seria sagrado e, logo, ?perfeito?. A história tem como enfoque principal as personagens do carpinteiro José e de Jesus, trilhando um caminho de humanidade, no qual são realçados seus defeitos que os tornam verdadeiramente comuns e mortais. Assim, a ateísta narrativa saramaguiana adquire seu caráter transgressor na porque coloca o nazareno como fruto de um ato sexual praticado por José e Maria e o envolverá, na maturidade, com a lasciva prostituta Maria de Magdala.
A narrativa se estende por vinte e cinco capítulos, nos quais se vê a elocução de uma voz em terceira pessoa, que não se restringe a contar os episódios e que constantemente lança juízos sobre os fatos, as personagens, a religião e a própria enunciação narrados. Seguindo um prólogo no qual o narrador descreve a crucificação de Cristo de acordo com uma gravura de Albrecht Düher, a trama trata em ordem linear da vida do seu protagonista.
Além de questionar a imagem do deus dos hebreus, Saramago ainda subverte a figura de Cristo bem como seus signatários. O Messias é descrito como um homem de carne e osso, que sente medo e remorso, e ainda se entrega aos prazeres da carne ? isto é, profundamente humano. O autor também estabelece uma equiparação entre Deus e o Diabo, o que acaba rebaixando um e engrandecendo outro. O texto confere uma feição profanadora no tocante a representação de Deus como um soberano autoritário e interesseiro.
Um dos elementos do estilo saramaguiana é o erotismo, que se insere na mitologia religiosa e que causa implicações estéticas e ideológicas que conferem um aspecto ainda mais acentuado de profanação. Personagens como a lasciva prostituta Maria de Magdala secularizam os ícones e os pressupostos, pondo-os no bojo na carnalidade humana. Nesse sentido, em meio à sofrida paixão de Cristo, cria-se um espaço para a sensualidade de Maria ? em passagens que carregam certa lubricidade ao expor um decote ousado, dada a época histórica recriada, com o qual valoriza a anatomia dos seios, que atrai a danação dos homens. A voluptuosidade corriqueira na narrativa busca quebrar o pressuposto ideal ascético de imaculabilidade da concepção bíblica.
Maria de Magdala parece incorporar um instrumento de resistência de um Salvador casto. É por intermédio de uma sexualidade florente que o protagonista deixa fluir suas pulsões reprimidas, entregando-se aos braços libertinos da meretriz. Curiosamente, é no episódio de primeiro encontro entre os dois que Jesus, ao ver-se diante da libertina, evoca a moral religiosa, numa tentativa de reprimir suas próprias pulsões ? não outrem, mas ele mesmo ?, citando versículos de Eclesiastes, que tratam especificamente da devassidão encarnada na figura da mulher. Assim, Saramago, restituindo seu caráter profano e contestador, metaforiza através da voz onisciente as manifestações físicas do nazareno de maneira quase escatológica. Sobrepõe-se, então, a carnalidade humana erotizada aos referendos moralistas da espiritualidade judaico-cristã.
Em última instância, Evangelho segundo Jesus Cristo excepcional no qual o romancista usa de ferramentas retóricas para ressignificar o mito, bem como quebrar pressupostos. Com a publicação deste livro, o autor rompe com o governo português, após vetos de censura. Como resultado da manobra política, Saramago e a mulher transferiram a residência para o arquipélago de Canárias, permanecendo na ilha de Lanzarote. A partir de seu ?Ensaio Sobre a Cegueira? (1995), Saramago apresentaria uma narrativa cada vez mais contemporânea, todavia mantendo a crítica aos costumes, ao capitalismo e à religião.
Se Fernando Pessoa criara persona que produziam independentemente, Saramago cria um narrador ciente de desse passado religioso, por meio do qual entretém o leitor ao opor personagens entre si, santificando os renegados e diminuindo os santificados. O narrador saramaguiano põe em xeque dilemas insolúveis na tradição judaico-cristã, e, ao mesmo tempo em que tenta questionar a figura divina, restitui-a em si próprio na medida em que manipula a história com um rigor onisciente.